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13º Congresso GIFE: Desconcentrar é verbo de ação e urgência da transformação social

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Entre os dias 7 e 9 de abril, o 13º Congresso GIFE reuniu, em Fortaleza, vozes periféricas e lideranças do setor nacional e internacional para debater os desafios da filantropia no Brasil, a descentralização do poder e a valorização dos territórios. A equipe do Impacta Nordeste acompanhou os principais debates do encontro e apontou caminhos para uma atuação mais equitativa e efetiva.

*Foto de capa: Abigail Disney na abertura do 13o Congresso GIFE (Divulgação/GIFE)

Para que a filantropia e o investimento social privado (ISP) deixem de ser vistos apenas como canais de repasse de recursos e se consolidem como ferramentas de justiça social, é necessário promover maior diversidade nos espaços de poder e reconhecer o papel transformador da filantropia quando esta se alia às vozes e práticas dos territórios. A verdadeira cooperação se constrói a partir do diálogo, da escuta ativa e da distribuição mais justa de recursos, poder e oportunidades.

Essa foi a tônica do 13º Congresso GIFE, maior encontro da América Latina sobre filantropia. Com o tema “Desconcentrar poder, conhecimento e riqueza”, o evento foi realizado entre os dias 7 e 9 de maio, em Fortaleza, com a participação de 1,2 mil pessoas, incluindo 185 palestrantes, especialistas e lideranças do setor nacional e internacional, além de representantes de organizações da sociedade civil.

13º Congresso GIFE recebeu um público 1.2 mil pessoas. (Divulgação/GIFE)

Durante o Congresso, foram apresentados dados do estudo inédito Olhares do ISP: reflexões e análises à luz do Censo GIFE, de 2024, que evidenciam a concentração de pessoas brancas em espaços de tomada de decisão, como conselhos deliberativos e cargos executivos, nas maiores instituições filantrópicas do país. Já o Censo GIFE 2022-2023 reforçou essa desigualdade em números, cerca de dois terços das cadeiras nos conselhos são ocupadas por homens.

“Nosso propósito é estimular, por meio da filantropia institucionalizada, mudanças sociais estruturais e também disruptivas. E essas transformações passam, necessariamente, pela escuta e valorização dos conhecimentos e das pessoas que estão ‘na ponta’, nos territórios”, ressaltou Cássio França, secretário-geral do GIFE. “A filantropia é, neste sentido, uma verdadeira cooperação nacional”, acrescentou. 

Nordeste no centro das discussões sobre filantropia

O Brasil carrega desigualdades históricas que se expressam especialmente nas regiões Norte e Nordeste. Nessas áreas, projetos sociais desempenham papel fundamental ao promover cidadania, acesso a direitos e inclusão para populações invisibilizadas. São iniciativas que nascem da base, com soluções construídas a partir da realidade local, mas que ainda enfrentam dificuldades de financiamento e reconhecimento.

Nesse cenário, a escolha de Fortaleza como sede do 13º Congresso GIFE representou um marco importante. Pela primeira vez em 15 anos, o principal encontro sobre filantropia e investimento social privado do Brasil saiu de São Paulo e foi para o Nordeste. A título de reflexão, um dado do Censo GIFE 2022-2023 revela que 72% da atuação do investimento social privado ainda estão concentradas na Região Sudeste e que no setor filantrópico foram investidos mais de R$ 4,8 bilhões de reais.

O GIFE afirmou que o estado do Ceará abriga uma pujante rede articulada de investidores sociais privados, além disso, o Nordeste vivencia o crescimento do ISP por meio de organizações estruturadas e iniciativas transformadoras, configurando-se como região propícia à ampliação de parcerias e ações que contribuam com a redução das desigualdades no país.

Plenária de abertura com Abigail Disney

Abigail Disney, filantropa, ativista e uma das herdeiras de Walt Disney, compôs a mesa de abertura do 13º Congresso GIFE. Ela destacou a importância da sociedade civil compreender o impacto da construção e do fortalecimento de ações conjuntas e intencionais, que incluam todas as pessoas. 

Em sua fala, instigou a respeito do acúmulo de capital e poder, e reforçou que apenas uma parcela da população tem acesso ao capital social e político. Segundo ela, a população pobre e de classe média doa em média 20% de seus ganhos, enquanto os ricos, apenas 9%.“Nós, brancos e ricos, precisamos começar a nos fazer perguntas difíceis, e mudar a nossa forma de posicionamento para poder transformar o mundo”. 

Destacando a importância das mulheres na sociedade e na filantropia, Abigail afirmou que o Investimento Social Privado pode, de forma estruturada e coordenada, “mudar a realidade de um país”, juntamente com a capilaridade das ações governamentais. Ela também enfatizou que para haver “desconcentração de riqueza e sabedoria”, o poder não pode ser limitado apenas àqueles que têm recursos. “Que tal se todos nós escolhermos viver tendo a mesma importância?”, refletiu.

Emergência climática e transição ecológica

Às vésperas da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30), que será sediada no Brasil, a emergência climática já se impõe como realidade. Seus efeitos exigem respostas imediatas e estruturantes, inclusive da filantropia. Durante o 13º Congresso GIFE, especialistas apontaram que, embora o setor esteja mais atento à pauta socioambiental, ainda atua de forma tímida diante da complexidade da crise, muitas vezes priorizando novas iniciativas em vez de fortalecer ações já existentes nos territórios.

Painel no 13º Congresso GIFE (Foto: Sara Café)

“É um exercício constante fazer os recursos chegarem nos territórios”, afirmou Jonathas Azevedo, da Rede Comuá. Sylvia Siqueira, da Open Society Foundations, reforçou: “Essa conversa é sobre vida, e a vida acontece em corpos, em territórios”. Para Patrícia Garrido, do Instituto Ethos, os riscos climáticos já são realidade. O debate também destacou o papel estratégico do investimento social privado (ISP) em um contexto de transição ecológica, mostrando que os desafios não são apenas ambientais, mas profundamente econômicos e sociais.

Natália Leme Quadros, da Fundação Arymax, defendeu que só será possível uma economia sustentável com oportunidades dignas de trabalho. Já Vahíd Vahdat, do Instituto Veredas, alertou que uma transição verde sem inclusão produtiva pode ampliar ainda mais as desigualdades. O ISP, nesse cenário, é chamado a atuar com coragem, visão de futuro e compromisso com quem está na linha de frente da mudança.

Big Techs, inteligência artificial e educação

O debate sobre o papel das big techs na democracia vai além da regulamentação e exige uma mudança de paradigma. É preciso conceber tecnologias que coloquem o ser humano no centro, promovam o bem-estar coletivo e respeitem limites éticos. “As plataformas precisam ser transparentes”, defende Rodrigo Carreiro, do Aláfia Lab, lembrando que, apesar das garantias do Marco Civil da Internet, ainda falta abertura de dados para análise pela sociedade civil e academia.

Nina da Hora, pesquisadora em inteligência artificial, alerta para a necessidade de valorizar a interação humano-computador e critica a lógica extrativista das grandes empresas de tecnologia. Já Isabella Henriques, do Instituto Alana, ressalta que, em um país com altos índices de analfabetismo funcional, é essencial refletir sobre o impacto da IA na educação: “Uma criança constantemente vigiada talvez não queira errar, e o erro é parte essencial do aprendizado.”

Com olhar crítico e propositivo, Tarcízio Silva, da Desvelar e NANET/Abong, reforça que a IA carrega os vieses da inteligência humana e só poderá ser regulada de forma justa com diversidade de raça, classe e experiências. “Não se constroi um sistema educacional sem professores, da mesma forma, não se constroi uma regulação tecnológica legítima sem participação plural e inclusiva.”

Redistribuição de poderes

Fortalecer a relação entre investidores sociais e comunidades exige mais do que repasses pontuais, pede escuta ativa, continuidade na gestão de recursos e investimentos de longo prazo. Guiné Silva, da Fundação Tide Setubal, destacou que a confiança é a base para propostas de bem-viver sustentáveis. “É essencial investir de forma duradoura em fundos territoriais e em relações pautadas pela confiança mútua”, afirmou.

Painel no 13º Congresso GIFE (Foto: Sara Café)

Mahryan Sampaio, do Fundo Brasileiro de Educação Ambiental, reforçou a centralidade dos territórios no diagnóstico e na gestão dos recursos, a partir de seus próprios marcadores sociais e prioridades. Já Marcelle Decothé, da Iniciativa Pipa, defendeu a inversão da lógica tradicional de financiamento, apontando o Guia das Periferias para Doadores como exemplo de ferramenta para aproximar quem doa de forma mais sensível e alinhada às realidades locais: “O dinheiro não pode ser o fim. O fim é a superação das desigualdades.”

O debate também trouxe à tona a importância da continuidade nas estratégias de filantropia. Lígia Batista, do Instituto Marielle Franco, alertou que o impacto real exige consistência: “Não existe transformação sem uma estratégia consolidada.” Ela ainda provocou uma reflexão sobre a origem dos recursos: “Se a riqueza vem da desigualdade, inclusive racial, é preciso que sua distribuição funcione também como medida de reparação.”

Escuta territorial como ferramenta de transformação social

Durante o 13º Congresso GIFE, um dado marcante chamou atenção: cerca de 80% dos recursos do Investimento Social Privado (ISP) ainda estão concentrados na Região Sudeste, conforme apontado por Raphael Meyer, da Simbi. Para reverter esse cenário, os participantes defenderam a importância da intencionalidade nas decisões filantrópicas. “A desmobilização é natural quando não toca na pele”, alertou Guibson Trindade. Paula Fabiani (IDIS) e Camilla Valverde (ArcelorMittal) reforçaram que equidade só será alcançada com escuta ativa e ações estruturantes.

Painel no 13º Congresso GIFE (Foto: Sara Café)

Camilla citou o caso do investimento de R$ 2,7 milhões em negócios locais no Ceará como exemplo de atuação territorial mais sensível. Já Joaquim Melo, do Banco Palmas, defendeu que a filantropia precisa partir das organizações da sociedade civil, reconhecendo o conhecimento endógeno das comunidades. “Ela pode compartilhar, distribuir, mas principalmente, deve aprender com quem está no território”, disse.

Benilda Brito, do N’zinga Coletivo de Mulheres Negras de MG, destacou que quilombos, aldeias e favelas já possuem soluções próprias, mas exigem escuta genuína. Para ela, o ISP precisa superar a lógica paliativa e enfrentar de fato os racismos estruturais: “Band aids não vai sarar nossas fraturas expostas. Vamos precisar fazer muito mais para transformar.”

Convite para ação

A plenária de encerramento do 13º Congresso GIFE lançou um convite contundente à ação: qual será o futuro do investimento social privado (ISP) e da filantropia nos próximos trinta anos, se não forem capazes de desconcentrar poder, conhecimento e riqueza em um país profundamente desigual? A urgência é clara, ou esses campos se tornam ferramentas efetivas de transformação, ou seguirão apenas perpetuando o status quo.

O anúncio do falecimento de dois jovens da periferia de Fortaleza, participantes do Instituto Pensando Bem, trouxe o luto para o centro da plenária, reforçando a urgência da mudança. A fala impactante de Ticiana Rolim, fundadora da Somos Um, traduziu o sentimento coletivo: “Ou a gente fecha a humanidade ou questionamos a nossa humanidade”. O debate foi enriquecido pela pesquisadora Jessica Sklair, que, ao recuperar a trajetória do setor, reconheceu avanços importantes, especialmente na diversidade e nas pautas emergentes.

Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú, destacou a ética da interdependência como pilar para um desenvolvimento verdadeiramente coletivo. Para ele, democracia, educação e tecnologia devem caminhar juntas, reconhecendo que “eu e o outro precisamos simbolicamente um do outro”. Encerrando o evento, Cássio França, secretário-geral do GIFE, sintetizou a essência do encontro: “Não nos interessa um congresso só da filantropia, mas um espaço com toda a sociedade civil”.

Sara Café, é graduada em Comunicação Social/Jornalismo, especialista em assessoria de comunicação e formação em fotografia. Atua na área de inovação e impacto social através de trabalhos de jornalismo, redação e produção de conteúdo, mídias sociais, assessoria de imprensa e coberturas fotográficas. Bolsista de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação no Laboratório de Inovação do SUS no Ceará (2021) e do Observatório de Educação Permanente em Saúde (2022), projetos da Escola de Saúde Pública do Ceará. Produz entrevistas e matérias jornalísticas especializadas para o hub de negócios TrendsCE. Voluntária e Diretora de Comunicação do Instituto Verdeluz (gestão 2019 a 2022) e membra da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência), da Rede Narrativas e integrante da Rede Linguagem Simples Brasil.

Sara faz parte da Rede Impacta Nordeste.