Ao que tudo indica, a solidariedade viralizou no nosso país, e já não era sem tempo!
Enquanto escrevo este artigo, o Monitor das Doações COVID 19, atualizado diariamente pela ABCR – Associação Brasileiras de Captadores de Recursos, marca mais de 4,14 bilhões de reais doados como resposta à pandemia. Esse valor já e superior aos 3,25 bilhões doados em 2018, segundo o Censo GIFE, que realiza a pesquisa a cada dois anos.
Os recordes não param aí. Uma simples busca na internet vai nos mostrar os sucessivos feitos históricos de doações e iniciativas para ajudar as vítimas da pandemia de covid-19: doações bilionárias de empresas ligadas ao sistema financeiro, milhões de visualizações simultâneas, toneladas de alimentos e centenas de quilos de álcool em gel arrecadados numa mesma live. Iniciativas de auxílio médico e psicológico, plataformas online, consolidação de cursos gratuitos, mentorias, produção de máscaras, respiradores e EPIs para profissionais da saúde… a solidariedade está por todos os lados.
Naturalmente, as campanhas de doações em dinheiro, de cestas básicas, as famosas vaquinhas online e campanhas solidárias em geral, se multiplicaram. O “mapeamento de iniciativas contra a Covid-19” da ponteAponte, por exemplo, levantou de forma colaborativa cerca de 450 campanhas até 26/4, quando completamos exatos 60 dias desde que o Ministério da Saúde confirmou oficialmente o primeiro caso de pessoa infectada com a covid-19 no Brasil.
Tudo isso nos comove e chama atenção, porque o Brasil está entre os países menos solidários do mundo. Na pesquisa World Giving Index 2019 (Índice Mundial da Solidariedade, em português), de 126 países que foram analisados, o Brasil ficou na posição 74. Quando o assunto é solidariedade, parece que temos mais a aprender do que a ensinar.
Mas estamos aprendendo. Prova disso é o #DiadeDoarAgora, dia mundial de doação e união que aconteceu em 05 de maio, acompanhando o movimento global #GivingTuesdayNow. Segundo a organização brasileira, que acompanhou 200 campanhas, a mobilização foi intensa e bastante expressiva, sobretudo no mundo digital. Alguns números apresentados até a conclusão deste artigo: R$ 2.350.599,00 em doações; 14 milhões de alcance estimado nas redes sociais; 3.243 doadores; +40 mil interações; +4mil engajamentos com as hashtags: #DiadeDoarAgora #DiadeDoar #eudoei.
Provavelmente ainda é cedo para dizer se a solidariedade vai ser um legado duradouro da atual crise sanitária no nosso país – ainda é cedo para dizer muita coisa, na verdade – mas me parece o momento ideal para refletirmos e questionarmos como essa solidariedade tem viralizado.
No que diz respeito a essas reflexões, recomendo a leitura do relatório “Os primeiro 60 dias de Covid-19 no Brasil em 60 fatos, reflexões e tendências em filantropia, investimento social e no campo de impacto social”, elaborado pela ponteAponte.
Acerca de tudo isso que foi dito, que sou grande entusiasta e participante ativa, se me permitem, como fundadora de ONG, como cearense e como mulher negra, gostaria de registrar três fatos importantes sobre e para esse momento de grande manifestação solidária:
– Não é verdade que estamos todos no mesmo barco. Alguns atravessam esses dias nos seus “transatlânticos”, enquanto outros – pobres, negros, mulheres, favelados, domésticas etc. – estão nas suas “canoinhas” (e há aqueles que nem isso). É dever dos ricos, dos milionários e dos bilionários doar mais.
– Não podemos permitir que toda essa solidariedade aprofunde ainda mais as desigualdades. Precisamos questionar o porquê, mais uma vez, o investimento social privado privilegia o Sudeste. A quem queremos salvar?
– As pequenas ONGs, associações de base e coletivos precisam de subsídios agora! Muitas dessas iniciativas podem fechar as portas de vez nas próximas semanas, se isso acontecer, serão milhões de pessoas sem o mínimo de assistência, serviços de educação, cultura, saúde, arte, esporte… sem o mínimo de dignidade.
Daiany França é cearense, mulher negra, gestora de projetos sociais e empreendedora. É fundadora do Instituto Esporte Mais, gerente do projeto e rede Construindo o Futuro e mestranda do Programa de Pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da USP.