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Como aprendi sobre os Negócios de Impacto viajando em carroceiras de caminhões

Quando pensamos em geração de impacto positivo somos levados a crer que a escalabilidade deve ser um dos objetivos centrais e responsáveis pela geração de impacto positivo a centenas, milhares e talvez milhões de pessoas e que o crescimento econômico ideal é algo como uma curva ascendente, quase vertical. Bom, isso não é ruim, mas também, com toda certeza, não é o único modelo eficaz de impactar positivamente muita gente, de gerar crescimento econômico sustentável e promover o desenvolvimento territorial e humanitário. Mas de onde vem essa minha certeza? A resposta é de conversas e observações durante viagens em canoas e carrocerias de caminhões, por exemplo.

No início dos anos 2000, fiz muitas viagens em transportes que pareciam ser pouco convencionais e confortáveis. Viajava horas a perder de vistas em canoas pelos rios amazônicos, em ônibus que há muito tempo não deveriam transportar mais ninguém, em velhos trens na Índia e em carrocerias de caminhões. E foi numa carroceria de um caminhão, observando com os olhos cheios de poeira a vida além da aridez do sertão do Piauí, enquanto ouvia às histórias das mulheres dos povoados Onça 2 e Zabelê, que compreendi melhor os Negócios de Impacto e minha linha de atuação junto a eles.

Numa das conversas com as mulheres de Onça 2 e Zabelê, a dona Arlinda, uma sábia senhora de idade já bem avançada e rosto repleto de marcas de uma vida árida, disse para mim que a felicidade vinha das tripas. Segundo ela, quando se comia, tudo ficava muito mais feliz. Naquele momento descobri a razão da minha abalada saúde a meses sem que exame algum descobrisse a causa.

Eu que havia deixado uma confortável carreira de engenheiro para enfrentar as adversidades do mundo que eu gostaria de ajudar a melhorar, me deparava com a chegada do século XXI enquanto as pessoas que iam compondo meu novo mundo dormiam vazias, com fome de comida e de sonhos. Minha doença era tristeza e frustação por não conseguir transformar rapidamente a vida de milhões de pessoas que, assim como a dona Arlinda, tinham sido levadas a crer que a felicidade vinha das tripas. Precisei então mudar. Resolvi seguir o caminho das micro transformações, que ao se juntarem com tantas outras micro transformações, formariam com o tempo uma grande transformação.

Através de muitos diálogos, escutas acolhedoras, olhares respeitosos, silêncios estratégicos, potencialização dos saberes locais, respeito ao tempo de cada lugar e resgates dos quereres de cada povo, promovi cocriações de processos essencialmente humanos. Dessa forma, como uma leve correnteza num rio, as melhorias alcançadas por alguém que percebeu que podia estar a frente do reencontro com seus sonhos perdidos é levada a outras pessoas e assim, pequenos grupos formam suas próprias transformações e vão se somando as transformações de outros grupos, que com a força do coletivo, promovem o desenvolvimento territorial e humanitário.

Em minha trajetória nunca levei soluções prontas, metodologias para rápidas e eficazes transformações e inovações que não abraçassem os saberes locais. Talvez eu seja do tempo em que era permitido ver além da internet, do tempo que se parava para ouvir, refletir, sonhar e só depois, criar, ou melhor, cocriar. Sou do tempo que as grandes transformações ocorriam a partir da sucessão das micro transformações.

Por fim, hoje ainda vivencio mundos muito distintos. Tem momentos que estou em canoas, outros em carrocerias de caminhões e alguns outros, em escritórios e auditórios modernos. E, através dessa circulação entre mundos, permaneço certo do poder das micro transformações e que, além do tempo, que corre com as startups, outros tempos são essenciais e potentes para construção de uma sociedade mais justa e acima de tudo, humana.

*Foto: Arquivo pessoal

Júlio Ledo é especialista em sair pra ver. Speaker no @tedx_official, professor, mentor, palestrante e consultor, em Negócios de Impacto, Humanização do Lucro e Desenvolvimento Territorial. Seu trabalho é ponte e rio, interliga territórios, pessoas e instituições, unindo inovações a saberes locais, valorizando os quereres de cada povo e respeitando o tempo de cada lugar. www.julioledo.com 

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