Opinião

Financiamento de projetos versus Desenvolvimento institucional

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Considero essa uma das batalhas mais inglórias para quem trabalha no terceiro setor ou com negócios sociais. 

Historicamente, as doações, investimentos sociais e patrocínios são destinados à projetos, mas e como ficam as organizações? Quem paga pelos custos indiretos como despesas administrativas, recursos humanos estratégicos, consultorias técnicas, pesquisa e desenvolvimento?

É sabido por todos, independente do setor, que essa é uma parte decisiva das organizações, se ela não é bem provisionada, o risco de o desenvolvimento institucional ser deficiente, é altíssimo.

Quer um exemplo?

Em 2020, no primeiro ano da pandemia de Covid-19, nós vimos uma onda de solidariedade tomar conta do país, você lembra? Eu sou ongueira, portanto, como dirigente de uma ONG do Ceará, assim como as milhares de organizações espalhadas pelo Brasil, estivemos na linha de frente do combate à fome, entregando cestas básicas, kits de higiene e arrecadando recursos e doações em campanhas diversas. Recebemos milhares de doações em cestas básicas, o que deu para aliviar a fome de centenas de famílias, mas nenhuma doação veio em dinheiro substancial para que pudéssemos pagar os salários das nossas equipes, fazer a manutenção do nosso prédio, onde armazenávamos as cestas básicas, por exemplo, e por aí vai. 

Esse é um exemplo “simples”, mas que ilustra bem essa dicotomia Financiamento de projetos versus Desenvolvimento institucional. No caso, podemos entender como projeto algo como “Brasil sem fome” e como desenvolvimento institucional tudo aquilo que ficou invisível (?) aos olhos dos doadores e investidores sociais privados, como o fato da nossa equipe executiva ter seguido gerindo a organização com carga extra de trabalho e redução de salário, inclusive com a missão (quase impossível) de desenhar estratégias de sobrevivência para o curto, médio e longo prazo.

“esse modelo de doação baseada em projetos já se provou que não deu certo, não garante impacto nem fortalece a sociedade civil organizada”

Como bem lembram Joice Toyota e Erika Sanchez Saez, co-CEO do Vetor Brasil e diretora executiva do Instituto ACP e integrante do Comitê Coordenador do Movimento por uma Cultura de Doação, respectivamente, esse modelo de doação baseada em projetos já se provou que não deu certo, não garante impacto nem fortalece a sociedade civil organizada. É chegado o momento de aprofundar as discussões sobre um novo modelo de doação e investimento social privado. E que modelo é esse?

Trata-se da “filantropia baseada em confiança”, que vem do inglês “trust-based philanthropy”, que na sua essência busca resolver os desequilíbrios de poder entre financiadores ricos e organizações da sociedade civil (OSCs/ONGs). 

A bilionária norte-americana Mackenzie Scott é uma grande porta-voz dessa mudança de paradigma. Em março, ela anunciou a divulgação de US$ 3,8 bilhões (R$ 18,4 bilhões de reais) a 465 ONGs, sendo 16 brasileiras. A grande diferença, além o grande volume de dinheiro, é que as doações de Scott entram na ONG de forma irrestrita, ou seja, as organizações podem gastar o dinheiro como quiserem e não em projetos específicos, o que é uma imensa contribuição para o desenvolvimento institucional. Mas é claro que isso não acontece sem uma avaliação prévia criteriosa e transparência. Saiba mais sobre quais ONGs brasileiras foram beneficiadas pela Mackenzie Scott aqui.

Enquanto ongueira e ativista das ONGs, fico imensamente feliz que essa discussão esteja ganhando força e atraindo cada vez mais investidores sociais privados no Brasil. É urgente que pensemos em novas formas de doações, investimentos sociais e patrocínios para as organizações, que sejam mais inteligentes, decentralizadas e sustentáveis no longo prazo.

Indicação: Se você ficou curioso(a) para saber mais sobre esse tema, recomendo a leitura da versão em português do artigo recém lançado – “Confiança na filantropia: uma ferramenta de acompanhamento e autoavaliação” -, traduzido por Luisa Bonin, pesquisadora brasileira convidada na Maecenata Foundation Berlin e Fellow do Programa German Chancellor Fellowship da Alexander von Humbolt Foundation. Na mesma ocasião, houve ainda a apresentação da versão beta de uma ferramenta virtual de autoavaliação (ou autorreflexão) para investidores sociais e filantropos, criada pela ponteAponte.

Daiany França Saldanha é cearense, mulher negra, gerente de projetos sociais e empreendedora. É fundadora do Instituto Esporte Mais, mestranda do Programa de Pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da USP e atualmente colaboradora da Phomenta, Portal do Impacto e Projeto Construindo o Futuro.