Por Gabriel Cardoso
Reza a lenda que no final da década de 90, o prefeito de uma pequena cidade ao sul da Índia decidiu tomar uma drástica iniciativa para acabar com as serpentes venenosas que estavam atacando crianças, adultos e idosos. Aprovou uma lei que prometia pagar dez mil Rupias indianas para toda pessoa que entregasse uma cobra morta na porta da prefeitura. Após seis meses da campanha e milhares de répteis sacrificados pelos populares, os casos de ataque acabaram e a população voltou a se sentir segura na região.
Curiosamente, um ano e meio após a celebração, os casos de ataque por serpentes voltaram a ocorrer e os atendimentos nos hospitais bateram todos os recordes. O prefeito não entendia o que estava acontecendo, pois, o número de cobras mortas e entregues pela população também havia crescido. O que poderia estar ocorrendo agora?
Depois de um período inicial de confusão e incredulidade, uma equipe de profissionais especializados da cidade descobriu o que aconteceu. A partir de uma investigação nas regiões em que mais ocorriam os ataques das serpentes, encontraram criadouros clandestinos e um mercado paralelo, criado especialmente após a bem-intencionada lei do prefeito. Pessoas começaram a criar serpentes para sacrificá-las e entregá-las à prefeitura, buscando gerar renda pessoal. As serpentes, provavelmente, estavam fugindo e a situação havia saído do controle.
Se esta história é ou não é verdadeira, deixo você pesquisar ao final. O ponto aqui é a provocação para nós que atuamos no campo socioambiental: boas intenções, apesar de necessárias, não são suficientes para gerar impacto social positivo. Qualquer iniciativa que tenhamos com essa intenção — negócios de impacto, organizações da sociedade civil, cooperativas, ações de voluntariado etc. — traz em seu escopo uma zona cinzenta de incerteza, imprevisibilidade e risco que deve ser considerada a priori.
Criamos a maioria das iniciativas que buscam impacto socioambiental com as melhores intenções, podendo focar tanto no enfrentamento de um desafio social (como na saúde, educação, moradia e alimentação) como ambiental (energia, água, fauna, resíduos e uso do solo, por exemplo). Uma vez que a iniciativa atravessa a linha que existe entre o mundo ideal e o mundo concreto, entrando em contato com a realidade, a tal zona cinzenta se desdobra, podendo trazer com ela consequências negativas e não previstas a uma ação ou projeto bem-intencionado.
Enquanto agentes de mudança (empreendedores, inovadores e líderes sociais), devemos considerar a tal zona cinzenta como parte importante de uma empreitada socioambiental. Trata-se de inserir em nossa prática uma análise de segunda ordem: pensar à frente e holisticamente não somente nas ações que serão tomadas e suas possíveis consequências positivas, mas também nos efeitos subsequentes que daí surgem e possíveis riscos de algo errado acontecer.
Na concepção, no planejamento, na reorganização e em diversos momentos da jornada, é crítico que o agente de mudança se reúna com seu time, beneficiários, investidores, fornecedores e outros stakeholders para ouvir e explorar a tal zona cinzenta, perguntando-se, por exemplo:
- Qual é o risco de a empreitada gerar um impacto inesperado e diferente do que planejei?
- Qual é o risco de a iniciativa gerar o impacto pretendido, mas também produzir consequências negativas e não previstas?
- E se a solução (processo, serviço, tecnologia), desenvolvida para uso no presente, for usada no futuro de forma diferente e indesejada?
- Qual é o risco de a solução simplesmente gerar um impacto negativo e piorar o problema socioambiental?
- Qual seria o perfil ideal de uma equipe, um modelo de negócio adequado e os processos coerentes necessários para proteger beneficiários, comunidades, sociedade e sua iniciativa de riscos futuros?
A Impact Management Project considera o risco como uma das cinco dimensões necessárias para compreender e descrever o impacto gerado por uma iniciativa. Segundo a organização, risco é a possibilidade de o impacto diferir do esperado e traz mais quatro perguntas que devem ser formuladas pelos agentes de mudança:
- Quem está vulnerável ao risco?
- Como avaliamos o risco?
- Como nós gerenciamos o risco?
- Como comunicamos o risco?
Há muito conteúdo gratuito e disponível para nos aprofundarmos no gerenciamento de riscos no campo de impacto social, mas talvez falte um pouco de priorização da temática nos eventos e discussões que participo. Vamos continuar falando sobre problemas socioambientais, inovação, causas, investimentos, tecnologia, modelos de negócio, avaliação de impacto, ecossistemas, comunicação etc., mas vamos também incluir no caderninho de impacto socioambiental a reflexão e o debate sobre os riscos das ações no nosso campo.
Gabriel Cardoso é mestre em educação, especialista em economia brasileira para negócios e administrador. Hoje é gerente executivo do Instituto Sabin, organização responsável pelo investimento social privado do Grupo Sabin. Autor e organizador de livros sobre empreendedorismo social e educação empreendedora, ajudou a popularizar e consolidar ambas as temáticas no ensino superior brasileiro. Também liderou os cursos de graduação no Centro Universitário UDF entre os anos de 2017 e 2019. Faz parte de conselhos consultivos e deliberativos, no Brasil e no exterior, dentro do terceiro setor, da iniciativa privada e da academia que focam as temáticas de ESG; inovação social; empreendedorismo; negócios e investimentos de impacto; educação empreendedora e filantropia. Site: www.gabrielcardoso.com.br