A filantropia comunitária e de justiça social é uma estratégia que reconhece e valoriza o papel das comunidades e suas lideranças na construção de ações coletivas voltadas para o desenvolvimento comunitário. Essa abordagem se adapta às realidades e potencialidades de cada território, atendendo às necessidades específicas de suas populações, promovendo mudanças duradouras através da participação ativa e do fortalecimento das capacidades locais.
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Diante de crises de ordem sanitária, econômica, política, ética, social e ambiental, a filantropia pode (e precisa) ser voltada ao combate de problemas sistêmicos e estruturais, em vez de se concentrar em questões pontuais. Essa abordagem é especialmente relevante em regiões marcadas pela desigualdade como o Brasil. Nesse contexto, em que a concentração de riqueza e a falta de acesso a direitos básicos são obstáculos à equidade e à dignidade, a filantropia pode ser um aliado importante para superar essas barreiras.
Assim, diante desse contexto, é fundamental fortalecer as organizações da sociedade civil e os diversos atores sociais, além de incentivar uma filantropia inovadora, capaz de trazer soluções para os desafios presentes. Essa visão está em sintonia com as tendências globais do setor filantrópico, que tem cada vez mais reconhecido a importância de uma filantropia comunitária e de justiça socioambiental. A filantropia comunitária, por exemplo, se baseia em práticas ancestrais de apoio mútuo e solidariedade, como as tradições indígenas e negras que vêm sendo valorizadas por sua capacidade de gerar resultados duradouros em comunidades vulneráveis.
Essas práticas demonstram que a filantropia pode ser um motor para a transformação social, ao promover a desconstrução de práticas coloniais e fomentar uma nova forma de fazer doações, baseada na confiança e no fortalecimento de atores locais. A filantropia comunitária também tem se mostrado eficaz em contextos de crise, como durante a pandemia de COVID-19, onde a mobilização de recursos comunitários foi fundamental para a resiliência e sobrevivência de muitas comunidades.
Esse tipo de filantropia, que foge aos modos tradicionais, não apenas apoia iniciativas locais, mas também fortalece a democracia e os direitos humanos ao trabalhar em parceria com as comunidades para construir soluções adaptadas às suas realidades. Essa abordagem requer uma mudança na forma como os recursos são distribuídos e utilizados, valorizando o conhecimento e as práticas locais para garantir que as mudanças sejam sustentáveis e impactantes a longo prazo.
No Brasil, já existe um conjunto de iniciativas e experiências desse tipo, em diversas regiões do país, que têm se destacado pela implementação de projetos inovadores de filantropia comunitária e de justiça social. A seguir, conheça cinco exemplos do Nordeste que têm proporcionado transformações reais em várias comunidades, demonstrando o poder da solidariedade e do engajamento local.
O Centro de Formação Mandacaru (CFM) é uma entidade filantrópica fundada em 30 de novembro de 1991, localizada na cidade de Pedro II, no sertão do Piauí. O projeto tem como diretrizes a Educação Popular e Comunitária, a Educação Formal, o Meio Ambiente e a Agroecologia.
Para promover essa transformação, a organização desenvolve projetos focados em segurança alimentar, segurança hídrica, gestão do conhecimento, fortalecimento organizacional e comunitário, práticas sustentáveis para a convivência com o Semiárido, entre outros.
De acordo com Neto Santos, coordenador geral do CFM, a contribuição concreta que o Mandacaru oferece no campo da filantropia comunitária e da justiça social é “oferecer uma educação formal de qualidade para filhos/as de famílias agricultoras e garantir mais igualdade e justiça social no Semiárido Brasileiro”.
“Nós atendemos 280 alunos/as por ano, filhos/as de famílias agricultoras de baixa renda, tanto dos bairros da cidade quanto de comunidades rurais do município, por meio de duas escolas mantidas pelo Centro de Formação Mandacaru de Pedro II, que oferecem educação regular. Uma das escolas é infantil, atendendo crianças entre 3 e 5 anos de idade, enquanto a outra oferece uma educação contextualizada e em tempo integral para jovens entre 11 e 18 anos”, afirma Neto Santos.
Rede de Mulheres Negras do Ceará
A Rede de Mulheres Negras do Ceará é uma iniciativa de justiça social que tem como objetivo combater a desigualdade racial e de gênero. Por meio de ações de formação, advocacy e apoio psicológico, a rede tem empoderado mulheres negras a se tornarem líderes em suas comunidades. Essa iniciativa tem sido importante para a promoção de direitos e a criação de oportunidades para um grupo historicamente marginalizado.
Segundo a coordenadora do projeto, Luciana Lindenmyer, a missão da Rede é transformar a realidade social das mulheres negras por meio da promoção da igualdade racial e de gênero, do fortalecimento da identidade cultural afro-brasileira e do combate à violência e discriminação. “Com um enfoque no suporte e capacitação, buscamos construir uma sociedade mais justa, equitativa e inclusiva, onde as mulheres negras possam exercer plenamente seus direitos e potencialidades, lutamos por reparação e bem viver”, afirma.
“Nossas ações e projetos da Rede avançam na perspectiva de ampliar a mobilização para que a população negra reivindique seus direitos. Nós lutamos por políticas públicas efetivas, eliminar do racismo institucional que encarcera e mata pessoas negras todos os dias. Entendemos que nossas ações, nossos projetos e bandeiras são em prol de uma sociedade mais justa, com equidade e diversidade”, concluiu Luciana Lindenmyer.
O Instituto Chapada é uma organização da sociedade civil (OSC) localizada na Chapada Diamantina, Bahia. A instituição atua em redes municipais de ensino, oferecendo formação continuada para profissionais das redes públicas, com o objetivo de melhorar a aprendizagem dos estudantes do ensino básico. Seus parceiros incluem secretarias municipais de educação, bem como institutos e fundações que investem recursos na educação.
Segundo Ana Flávia Sousa, assessora de comunicação da instituição, a missão do Instituto Chapada é “fomentar a implementação de políticas públicas de formação continuada em territórios colaborativos, aliada à mobilização sociopolítica e à produção de conhecimento, visando a garantia da aprendizagem dos estudantes da Educação Infantil e do Ensino Fundamental”. Ela acrescenta: “Atuamos para tornar a educação pública reconhecida como direito essencial para a formação de sujeitos plenamente alfabetizados, comprometidos com a paz, a democracia e a justiça social”.
AMASA – Associação de Moradores e Amigos de Santo André
A Associação dos Moradores e Amigos de Santo André (AMASA) é uma associação comunitária localizada no povoado de Santo André, em Santa Cruz Cabrália, Bahia, que tem por finalidade promover o envolvimento e o aprimoramento de Santo André e adjacências em questões relacionadas ao meio ambiente, desenvolvimento comunitário e preservação da cultura local.
Em parceria com a Associação dos Trabalhadores da Praia Ponta de Santo André, que tem por finalidade assegurar condições favoráveis para o livre exercício da atividade de comércio de alimentos e bebidas na Praia Ponta de Santo André, garante a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável da atividade e do povoado.
Em carta aberta das diretorias das associações afirmam que, desde 2023, as duas associações estão passando por um processo de reestruturação, fortalecimento institucional e atuação coletiva para consolidar e ampliar a atuação das associações em defesa dos direitos da população nativa e trabalhadora de Santo André.
“Cerca de 60% da renda da população nativa da vila vem do comércio da praia, para garantir seu direito ao trabalho, a Associação encaminhou à Secretaria do Patrimônio da União (SPU) um pedido de regularização fundiária. Também está sendo desenvolvido um projeto arquitetônico, paisagístico e hidrossanitário para solicitar a regularização do conjunto de barracas, uma reforma da sede da AMASA com o objetivo de oferecer serviços como biblioteca e atendimento psicológico, e por fim a elaboração um plano comunitário de saneamento básico, propondo soluções adaptadas ao contexto local.”
O Projeto Viamar é uma organização da sociedade civil que atua em Cabedelo-PB e região com um forte compromisso em iniciativas sociais, educacionais, ambientais e esportivas. O projeto realiza mobilizações comunitárias e promove a conscientização sobre os direitos de moradia digna, além de organizar campanhas e atividades que buscam melhorar as condições de vida das pessoas e famílias em situações de vulnerabilidade.
O esporte desempenha um papel essencial no Projeto Viamar. A organização realiza eventos e oferece aulas esportivas regulares para crianças, jovens e adultos da comunidade. Além de promover saúde e lazer, essas atividades ajudam a integrar a comunidade e oferecem uma oportunidade de crescimento pessoal e coletivo, sempre em um ambiente acolhedor e seguro.
Acreditando no poder da colaboração, Nialysson, fundador do Projeto Viamar, está criando um coletivo de ONGs de Cabedelo e João Pessoa com o objetivo de se “autofortalecerem”. Ele, junto com outras lideranças, tem mapeado os principais desafios sociais e identificado oportunidades para ações conjuntas, como a criação de redes de apoio e estratégias que ampliem o impacto local. “Quando nos unimos, fortalecemos nossas vozes e multiplicamos nosso impacto. O coletivo que estamos criando não é apenas sobre compartilhar recursos, mas sobre construir uma rede de apoio”, destaca Nialysson.
Considerações finais
As organizações mencionadas, como o Centro de Formação Mandacaru, a Rede de Mulheres Negras do Ceará, o Instituto Chapada, a AMASA e o Projeto Viamar, têm demonstrado contribuição positiva na promoção de justiça socioambiental, direitos humanos e desenvolvimento comunitário. No entanto, a sustentabilidade financeira dessas iniciativas é um desafio constante, o que pode limitar seu alcance e continuidade.
Diante disso, fazemos novamente o convite para que a filantropia brasileira reveja suas práticas, direcionando apoio a essas ONGs, que estão na linha de frente das transformações locais e/ou comunitárias. Doar para essas organizações é investir diretamente na construção de um futuro mais justo e digno para todas e todos.
Referências
Centro de Formação Mandacaru Pedro II. Disponível em: https://cf-mandacaru.org/. Acesso em: 2 set. 2024.
IDIS, Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social. Fórum Brasileiro de Filantropos e Investidores Sociais. Disponível em: https://www.idis.org.br/forum/. Acesso em: 2 set. 2024.
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Instituto Sabin. Venture Philanthropy: importa menos o nome e mais o que ele traz consigo. 16/05/2022. Disponível em: https://gife.org.br/venture-philanthropy-importa-menos-o-nome-e-mais-o-que-ele-traz-consigo/. Acesso em: 2 set. 2024.
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Movimento por uma Cultura de Doação. A lição de doação da comunidade Portelinha. LinkedIn Pulse, 14 dez. 2023. Disponível em: https://www.linkedin.com/pulse/li%C3%A7%C3%A3o-de-doa%C3%A7%C3%A3o-da-comunidade-portelinha-amoef/?trackingId=0FC1XQIGL%2BLge3jXNgYcHQ%3D%3D. Acesso em: 2 set. 2024.
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Rede Comuá. Revista Plurais – Vozes, Saberes e Práticas da Filantropia Comunitária e de Justiça Socioambiental. 2024. Disponível em: https://redecomua.org.br/wp-content/uploads/2024/03/COMUA-2024-PT-Revista-Plurais.pdf. Acesso em: 2 set. 2024.
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Rede de Mulheres Negras do Ceará. Disponível em: https://www.instagram.com/mulheresnegrasdoceara/. Acesso em: 2 set. 2024.
Daiany França. Cearense inquieta, empreendedora por natureza, professora e profissional da saúde por formação, pesquisadora, escrevedeira, eterna aprendiz e ativista das Organizações da Sociedade Civil. Fundadora e CEO da Mais Impacto e Líderes Esportivos. Bolsista do Programa Saberes, da Rede Comuá.
Sara Café. Jornalista atuante na área de impacto social e integrante da Rede Impacta Nordeste.