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Acervo da Laje: quando a periferia vira patrimônio

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No alto de uma laje em São João do Cabrito, no Subúrbio Ferroviário de Salvador, um museu rompe as fronteiras tradicionais da arte e da memória. Criado por José Eduardo e Vilma Santos, o Acervo da Laje transforma o cotidiano periférico em patrimônio cultural, dando visibilidade a artistas invisíveis e construindo um espaço onde a periferia é reconhecida como potência estética, histórica e social.

*Foto de capa: Bater da laje em 29 de marco de 2015. Vilma e Jose Eduardo (Acervo da Laje).

Moro há três anos em Boa Vista do Lobato, no Subúrbio Ferroviário de Salvador. Quando me mudei pra cá, confesso que cheguei com o pé atrás. A fama do lugar, cheia de estigmas de violência e abandono, me deixava inseguro. Mas, com o tempo, fui descobrindo um outro lado do Subúrbio. As praias calmas, como Tubarão e São Tomé de Paripe, me mostraram uma beleza que eu não esperava. A culinária rica, as rodas de samba animadas e a arte que brota em cada esquina me fizeram ver que aqui tem vida pulsando, tem resistência e tem história. Salvador não é só Farol da Barra ou Rio Vermelho; o Subúrbio também é Salvador, com sua essência única e cheia de diversidade.​

Foi nesse processo de descoberta que conheci o Acervo da Laje, no bairro de São João do Cabrito. Fundado em 2011 por José Eduardo Ferreira Santos e Vilma Santos, o espaço é mais que um museu; é uma casa, uma escola, um ponto de encontro. Lá, a gente encontra obras de artistas locais, bibliotecas temáticas, fotografias e objetos que contam a história do Subúrbio. O Acervo da Laje mostra que a arte não precisa estar só no centro da cidade. Aqui mesmo, no coração do Subúrbio, ela floresce e ganha vida, valorizando nossa cultura e nossa identidade.​

O Subúrbio Ferroviário, com seus 22 bairros e cerca de 600 mil habitantes, é um território cheio de histórias e tradições. Apesar dos desafios, a região mantém viva uma identidade própria, forjada na resistência e na criatividade de seu povo. Iniciativas como o Acervo da Laje são fundamentais para mostrar que a arte e a cultura estão presentes em todos os cantos da cidade, reafirmando que Salvador é uma metrópole plural, onde cada bairro contribui para a construção de sua identidade única.

O que é o Acervo da Laje

O Acervo da Laje nasceu de uma inquietação: por que a arte da periferia é invisível? Por que tantos artistas, tantos saberes e tanta beleza permanecem apagados da história oficial? José Eduardo relembra o início: “Na defesa do doutorado, um professor sugeriu que a gente olhasse para o subúrbio não pela violência, mas pela beleza. E foi aí que tudo começou.”

O projeto ganhou forma em 2010 com pesquisas sobre arte invisível nas periferias de Salvador, em parceria com o fotógrafo Marco Illuminati. Vilma focou nas mulheres negras da comunidade: “Elas tinham perdido seus filhos pra violência. Perderam a vontade de se sentir belas. Então a gente começou a retratar essas histórias com respeito.”

A partir dessas vivências, nasceu a primeira exposição: “Cadê a Bonita?”. Depois vieram outras, como “Ruínas do Território” e “A Beleza do Subúrbio”. O acervo foi crescendo dentro da casa do casal, até que eles tomaram uma decisão simbólica e prática: transformar a laje da casa em museu.

O que tem na Casa do Acervo

Quem visita o Acervo da Laje encontra um verdadeiro labirinto de memórias. São mais de 6 mil itens entre esculturas, fotografias, quadros, manuscritos, croquis, discos e azulejos. Tudo cuidadosamente catalogado, restaurado e exposto com curadoria afetiva.

“A gente comprava obras em feiras, recebia doações e até achava peças no lixo. Era tanta beleza sendo descartada, tanta história jogada fora…”, conta José Eduardo. Vilma completa: “Os próprios moradores começaram a trazer objetos. As crianças, os vizinhos, até motoristas de carreto trazem coisas que encontram. É uma curadoria coletiva.”

As exposições não ficam presas às paredes. Elas tomam conta das escadas, telhados e varandas. “Aqui tem obra no telhado, na parede, na varanda. Tudo é pensado para mostrar que existe elaboração estética no subúrbio”, explica Eduardo.

A laje como espaço simbólico

A escolha da laje como espaço expositivo não foi por acaso. “A laje é onde a gente sonha, respira, vê o horizonte”, diz José Eduardo. “Ela é resistência. É onde a periferia constrói seus futuros.” Para o casal, a laje representa um território de liberdade e de criação.

Eles criaram o projeto “Ocupação de Lajes”, que leva obras de arte para outras lajes da cidade. “Pode ser varanda, sala, corredor. Qualquer espaço pode ser galeria. A ideia é descentralizar a arte. Tirar ela do centro e devolver pra comunidade”, afirma Vilma.

O impacto social do Acervo da Laje

O impacto do Acervo vai muito além das obras. Ele toca a autoestima, a memória e os sonhos das pessoas. “Tem mãe que perdeu o filho e não tem uma foto. Quando ela vê uma imagem ali, ela conversa com a foto. Chora. Se reconhece. A arte cura”, conta Vilma.

Durante as oficinas, crianças e adolescentes se redescobrem. “A gente faz oficinas de observação, de desenho, de escultura. As crianças começam a ver beleza onde antes só viam abandono”, relata Eduardo. Ele complementa com um desabafo: “Tô cansado de ver aluno meu morto. Isso aqui é nossa resposta adulta.”

Exposições em outras cidades

O Acervo da Laje não ficou restrito ao bairro. Ele ganhou o mundo. Obras do espaço já foram exibidas no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM-RJ), na 3ª Bienal da Bahia, no SESC Pompeia (SP), no Itaú Cultural, no Museu de Arte do Rio (MAR), entre outros.

“Hoje, artistas do Brasil inteiro mandam obras para cá. Eles reconhecem que estar no Acervo da Laje é estar num espaço legítimo, importante, respeitado”, afirma José Eduardo com orgulho. Vilma celebra: “O que começou na laje da nossa casa virou referência nacional.”

Escolafro e Ações Pedagógicas

Uma das ações mais potentes do Acervo é o projeto Escolafro, voltado para crianças negras do subúrbio. Por meio de oficinas, filmes, contação de histórias e rodas de conversa, o projeto fortalece a identidade étnico-racial e resgata a autoestima.

“Trabalhar com fotografia foi essencial. As crianças começam a olhar pro próprio território com outros olhos. Elas dizem: ‘aqui tem arte, aqui tem beleza’”, compartilha Vilma. O projeto já impactou dezenas de famílias e segue como uma das frentes mais importantes do Acervo.

A arte como caminho de esperança

O Acervo da Laje se consolidou como uma das mais importantes iniciativas de preservação da memória cultural do Subúrbio Ferroviário de Salvador. Em pouco mais de uma década, o espaço deixou de ser um projeto experimental na laje de uma casa para se tornar referência nacional em curadoria afetiva, arte periférica e educação antirracista.

Sem apoio governamental fixo, o museu se sustenta pela dedicação dos fundadores, pela colaboração da comunidade e por recursos pontuais de editais. Mesmo com recursos limitados, o impacto do Acervo é amplo: acolhe, educa e devolve à comunidade a dignidade de sua própria história.

Mais do que um espaço de exposições, o Acervo da Laje cumpre um papel social fundamental ao tornar visíveis artistas, saberes e narrativas antes marginalizados. A laje, nesse contexto, não é apenas estrutura física — é símbolo de resistência, ponto de encontro e plataforma de criação.

Jônatas Akillah Pereira, 29 anos, é formado em Publicidade e Propaganda na Universidade Salvador (UNIFACS) desde 2015 e graduando em Bacharelado Interdisciplinar em Artes com enfase em Cinema e Audiovisual na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tem experiências profissionais como social media, marketing político e na área de cinema como editor e produtor. É um apaixonado pela tecnologia, escrita e cinema. Um eterno aprendiz sempre disposto a absorver o que o mundo e as pessoas em sua volta estão dispostos a ensinar. Busca direcionar o seu conhecimento para a luta antirracista.

Jonatas faz parte da Rede Impacta Nordeste.