Palavras e discursos têm poder. Muito mais do que os mais pragmáticos e amantes da objetividade imaginam. E um desses principais poderes é de funcionar como farol ético para sociedades, através da construção de narrativas que nos mobilizam e orientam nossas decisões e atitudes como partes de um imenso e complexo ecossistema, que orientam projetos que reúnem, às vezes, o mundo inteiro.
Das palavras, deriva a nossa vocação para a comunicação, sua principal consequência e função. Para a interação, para colaboração e para a troca de ideias e saberes. Para a educação.
É a matéria prima de argumentos, debates, da capacidade humana de mobilizar e negociar, que são fundamentais para vivermos em comunidades, nos organizarmos, para que tenhamos direitos e para que possamos lutar por esses direitos. Palavras são condições para democracia.
Democracia não é apenas um regime de governo em que a maioria decide, por votação, quem são seus líderes – esse é um entendimento para lá de simplório sobre algo tão poderoso e complexo. Uma das maiores criações da nossa História. Democracia é uma ética em que as pessoas participam da tomada de decisões sobre o interesse público e sobre a agenda de assuntos que influenciam suas vidas e o futuro de todos; em que debatem, entre si e através de representantes legítimos, em busca de consenso, para estabelecer normas e padrões de convivência. De modo inclusivo, onde todos os cidadãos tenham suas liberdades e seus direitos humanos assegurados. Democracia é sobre o uso da palavra para alcançar consensos. E, em grande parte, sobre cooperação.
Palavras também são a matéria prima da educação. Do ato fundamental de professar ideias, saberes e conhecimentos. De compartilhar com todo o mundo, desde crianças, sobre o que é importante e valioso para todos, sobre o que é crucial para que cada indivíduo possa alcançar a plenitude de suas competências e aproveitar seus talentos e as oportunidades disponíveis, mas também para que possa contribuir para o presente e o futuro de sua comunidade da melhor forma possível. Para que cada pessoa conte, entenda seus direitos e responsabilidades, os desafios que os ameaçam e os objetivos e as estratégias que, como protagonistas, podem formar o caminho para superar esses desafios – muitos deles, coletivos: comunitários, regionais, nacionais e até globais. Educação para cidadania.
Precisamos, como humanidade, entender isso, desde o mais cedo possível em nossas vidas: há desafios que não podemos ignorar e que não afligem apenas a nós, individualmente, mas que interessam a todos; sobre os quais precisamos nos mobilizar, nos organizar e trabalhar juntos para resolver.
São conteúdos que precisam estar presentes na escola, na universidade, nas associações comunitárias, nos escritórios nos topos de torres nos centros de negócios e de tomada de decisões em todos os países. Crianças e adolescentes precisam entender o quanto isso é relevante e está presente em suas vidas, no dia a dia, de suas famílias e comunidades desde cedo. Precisam entender como isso impacta o mundo em que eles serão cidadãos, empreendedores, profissionais e protagonistas, o mundo que será deles. Trata-se de contextualizar a educação para que se forme uma geração capaz de lidar com os desafios comuns e de inovar para responder a eles à altura.
Trata-se de ter visão sistêmica, conjuntural, sobre o mundo em que vivemos, e de perceber como as comunidades, cidades e países estão conectados entre si.
Alguns desses desafios sistêmicos são: as profundas desigualdades sociais e econômicas no campo e nas cidades; a imensa quantidade de pessoas que passam fome e vivem em situação de crítica vulnerabilidade social e risco à vida; em situação de pobreza extrema; os cenários também graves de insegurança alimentar, nutricional e hídrica; as violações sistemáticas aos direitos humanos especialmente de grupos minoritários; a discriminação acentuada e cada vez mais visível de gênero, étnico-culturais, dentre tantas outras – que afeta as pessoas e seus modos de vida; o avanço da poluição e da contaminação de fontes de água e de comida; as mudanças climáticas e seus muitos impactos; a pressão econômica sobre biomas já ameaçados; e a persistência de práticas de corrupção na governança pública em muitos lugares no mundo.
Apenas conseguiremos endereçar esses desafios no momento em que realmente nos mobilizarmos, pensarmos e atuarmos juntos, de modo coordenado e estratégico. No momento em que soluções para esse quadro sejam realmente prioridades para nós e, através de nossa pressão, de quem nos governa, de que tem controle sobre ou maior acesso a recursos financeiros e para que tem posições de vantagem, influência e liderança. Desafios globais exigem visão e ação sistêmica.
Tudo isso é, portanto, problema nosso. Nosso mesmo: de todos nós, de cada um de nós.
Nesse sentido, a plataforma dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) é um exemplo do poder das palavras como farol ético para a sociedade. Constituinte de uma narrativa sobre a importância da cooperação global, de pessoas, empresas, governos, da sociedade civil como um todo, em torno de uma agenda que considere as dimensões dos desafios que temos à nossa frente, como humanidade, e o que precisamos fazer, juntos e também individualmente, em prol da sustentabilidade da vida – das condições de vida, de subsistência e de trabalho. Um pacto global.
São comuns as críticas a essa abordagem, vindas de uma perspectiva mais pragmática e objetiva. “O papel aceita tudo”, dizem tantos. Outros afirmam que as metas vinculadas a esses Objetivos são ambiciosas demais, praticamente inatingíveis, o que as tornam nada práticas. Que esses acordos e documentos que são frutos de acordos políticos em eventos fechados e luxuosos, mas que os líderes e investidores não cumprem com o que dizem que vão fazer quando estão diante das câmeras. Essa é uma visão sobre a implementação dos ODS que pressupõe que mudanças apenas podem vir de cima para baixo.
São todas críticas válidas. São de fato desafios de articulação dos atores-chaves envolvidos na implementação de estratégias e na mobilização de recursos para viabilizar essas estratégias, que precisam ser resolvidos. Mas que apenas o serão a partir de nossa atuação como partes de uma sociedade civil organizada, bem coordenada e intensamente ativa, ativista, que pressiona, que assume a efetivação dos ODS como bandeira e como prioridade. E que deixa isso muito claro para todos esses líderes e investidores que devem passar do discurso para a ação. Governos que devem representar seus povos e agir de acordo com as premissas por eles determinados, de acordo com seus anseios. Empresas e investidores que precisam assumir claramente sua responsabilidade ética, social e ambiental para a sustentabilidade da vida, do mundo em que vivemos, para a sustentabilidade de seus próprios modelos de negócios.
E por isso mesmo é sim possível que a implementação dos ODS possa ser feita por uma perspectiva de baixo para cima, a partir das bases sociais, das comunidades e dos coletivos, grupos e movimentos sociais, ao se comprometerem, se apropriarem dessa plataforma como um instrumento de governança democrática e passarem a se articular e a cobrar de seus representantes ações e políticas claras nesse sentido. Os ODS deviam ser orientadores de políticas públicas consistentes e geradoras de impactos reais, no cotidiano das pessoas. A sociedade civil organizada tem um papel crítico nesse processo. Assim como empresas social e ambientalmente responsáveis, através de suas práticas e políticas de operação, de negócios, de gestão de pessoas, de relações com as comunidades e de Investimento Social Privado.
Cooperação para o desenvolvimento sustentável. Educação para o desenvolvimento sustentável. Ação para o desenvolvimento sustentável. Todos são termos chiques e sofisticados. Que carregam em si o mesmo vetor: o aprendizado e a mobilização que precisamos ter, como humanidade, para garantir um futuro viável para nós mesmos, para as futuras gerações. São todos meios para esse fim maior.
Palavras têm esse poder. O poder de criar narrativas que nos induzem, nos movem, nos energizam e permitem que sejamos capazes de seguir em frente, nos desenvolvendo como seres humanos e como sociedade. E os ODS são precisamente isso: um conjunto de palavras cheias de poder, tanto que sejam abraçadas, apropriadas e assumidas como provocação, estímulo e motivação por todas as pessoas. Um farol ético apontando o caminho para o futuro.
Gláucio Gomes atua hoje como diretor de desenvolvimento na Adel. É especialista em gestão do desenvolvimento local e co-fundador e sócio-diretor da Rummos Assessoria Pesquisa e Avaliação. Tem 18 anos de experiência em planejamento estratégico, gestão, mobilização de recursos, monitoramento e avaliação de programas de desenvolvimento humano, fortalecimento institucional e de iniciativas de investimento social e sustentabilidade corporativa em níveis nacional e internacional.