Quando se fala em empreendedorismo no Brasil, em especial o feminino, sem dúvida, um dos nomes mais marcantes é o de Ana Fontes, fundadora da Rede Mulher Empreendedora (RME). A organização, que tem onze anos de atuação e reúne quase um milhão de mulheres, oferece apoio e capacitação para milhões de empreendedoras em todo o Brasil.
Ana Lúcia Fontes é filha de mãe costureira e pai torneiro mecânico — alagoanos que migraram para Diadema (SP) com oito crianças fugindo da seca. Ana conta que desde muito cedo ela e seus irmãos tiveram que trabalhar fazendo bicos para complementar a renda de casa.
Trabalhou em bazar, chão de fábrica, em áreas administrativas. Ingressou na universidade para estudar jornalismo, mas acabou migrando para a publicidade e nessa área trabalhou por 18 anos no marketing de indústrias automotivas. Com anos de experiência no setor de marketing, ela deixou a carreira na busca de um ambiente de trabalho mais acolhedor e que lhe desse mais tempo com suas duas filhas.
Com 40 anos, em 2007, resolveu abrir seu primeiro negócio, uma plataforma na internet de recomendação de bons serviços, a Elogia Aqui, que Ana Fontes cita como um primeiro empreendimento no qual cometeu muitos erros, mas que foi o estalo para criar o embrião da Rede Mulher Empreendedora.
Tempos depois, Ana foi uma das 35 selecionadas, entre mil inscritas, para o programa de empreendedorismo “10.000 Mulheres da FGV”. Ao vivenciar o que lhe foi passado no programa, ela percebeu que era necessário compartilhar o que havia aprendido com outras mulheres. A partir daí, em 2010, nasceu a Rede Mulher Empreendedora. A primeira e uma das maiores plataformas de apoio ao empreendedorismo feminino no país.
“Foi a partir desse programa que eu percebi que, como eu, existiam várias mulheres que também estavam empreendendo, mas que não sabiam umas das outras e não tinham nenhum apoio, porque todo mundo falava que empreender é igual para homens e mulheres. E eu sabia que não era”, lembra Ana Fontes.
O Instituto Rede Mulher Empreendedora
A princípio, o RME, era uma forma de compartilhar com outras mulheres o que Ana aprendia sobre negócios na internet. Apenas no primeiro ano, o projeto atingiu um público de 100.000 pessoas.
Em 2017, Ana vai mais adiante e cria o Instituto Rede Mulher Empreendedora, uma organização social focada exclusivamente em capacitar e empoderar mulheres em situação de vulnerabilidade social. O trabalho da RME e o IRME, ao longo desses onze anos, tem ganhado destaque nacional e internacionalmente e atraído grandes parceiros como: Google, Amazon, Fundación Mapfre, Visa, Bradesco, Itaú, Santander, entre outras.
“Nosso propósito, nossa missão é fazer com que as mulheres tenham acesso à informação com conteúdo qualificado, mentorias, conexão de negócios, cursos, acompanhamento, palestras. Para que elas alcancem autonomia econômico-financeira. A gente entende que a autonomia financeira é fundamental, inclusive para que elas possam sair de situações abusivas e de violência doméstica, por exemplo”, afirma Ana Fontes.
Toda essa trajetória levou Ana Fontes a fazer parte da W20, plataforma da Organização das Nações Unidas, que tem como foco questões de igualdade de gênero e empoderamento feminino nas 20 maiores economias do mundo. Hoje, também é professora do programa Empreendedorismo em Ação, do Insper, além de mentora e conselheira do programa 10.000 mulheres da FGV.
Conversamos com Ana Fontes e Cintia Lima, Gerente de Relações Institucionais do IRME, sobre os desafios enfrentados por mulheres empreendedoras e os planos para a RME e o IRME.
Em sua entrevista para Exame (5/10/2020), você mencionou que a sua experiência como empreendedora surgiu a partir de uma mudança de rota em sua carreira. O que levou a essa decisão e quais foram os principais desafios na transição para o empreendedorismo?
Ana Fontes – Eu era executiva no ambiente corporativo e em dezembro de 2007 resolvi pedir demissão. Os fatores que me levaram para essa decisão foram a maternidade, não encontrar no ambiente no qual eu trabalhava algo que tivesse relacionado ao meu propósito e também, na época, assim como hoje, tinha uma questão de preconceito muito pesada. Eu costumo dizer que sou um kit diversidade: sou uma mulher, de origem negra, nordestina e fui criada na periferia de Diadema/SP. Então vencer desafios nessa composição era muito mais difícil do que para qualquer outra pessoa.
Um dos principais desafios dessa transição foi mudar a mentalidade, porque o ambiente corporativo te faz desaprender a empreender – sendo muito cheio de comando e controle – enquanto o ambiente empreendedor tem muito mais de tentativa e erro. A segunda coisa foi encontrar pessoas que já tivessem passado por essa jornada e que pudessem me ajudar. E por fim foi não ter calculado corretamente, no primeiro negócio a 14 anos atrás, quais eram os desafios iniciais: organizar as contas, questões de sociedade… também lançamos um negócio que não era muito conhecido na época.
Em que momento da jornada você percebeu a necessidade de compartilhar com outras mulheres os conhecimentos que você adquiriu ao longo de sua jornada empreendedora? Como foram os primeiros passos na criação da rede?
Ana Fontes – Durante meu processo de empreender, fui selecionada para um programa chamado 10.000 mulheres. Era um programa gratuito, aplicado aqui em São Paulo pela Fundação Getúlio Vargas. Nele eram selecionadas mulheres que tinham pequenos negócios e precisavam de ajuda. Passei a escrever tudo o que eu aprendia no curso num blog e, em 12 meses, já tinha 100 mil mulheres no blog. A partir dele iniciei o movimento Rede Mulher Empreendedora. Isso foi fundamental para eu entender que minha jornada não era só minha e que a gente podia se desenvolver e se fortalecer juntas.
Levando em consideração as desigualdades sociais e de gênero no Brasil, quais são os maiores desafios para uma mulher que quer empreender em nosso país?
Cíntia Lima – Ser mulher em nosso país é muito difícil e ser empreendedora ainda mais. Os maiores desafios são: conseguir acesso ao crédito; o acúmulo de tarefas, pois a maioria das mulheres precisa de dividir entre as necessidades do negócio e os afazeres de casa e da criação dos filhos, por exemplo. Também existe uma cobrança em manter uma performance perfeita, pois sem dúvida, não é simples administrar o negócio e a família; como também a falta de entendimento e apoio do próprio parceiro.
Com a deterioração das condições econômicas em nosso país, muitas mulheres acabam indo pelo caminho do empreendedorismo por necessidade. O IRME atende muitas mulheres nessa condição. É possível alcançar estabilidade financeira mesmo empreendendo por necessidade? Quais são os maiores desafios para essas empreendedoras?
Cíntia Lima – O empreendedorismo por necessidade é desafiador, mas não impossibilita o alcance da estabilidade financeira. Entendemos que os principais desafios para mulheres nessa situação são: gestão financeira (profissional x pessoal), acesso ao crédito, conquistar e fidelizar clientes e a digitalização do negócio.
Com a criação do Instituto Rede Mulher Empreendedora, de que forma vocês apoiam mulheres que querem empreender?
Cíntia Lima – Criando projetos e iniciativas capazes de empoderar empreendedoras, garantindo independência financeira e de decisão pessoal, através de capacitações práticas e teóricas com especialistas na área de empreendedorismo.
Por exemplo, um dos nossos programas, o Ela Pode, somente em 2021, realizou diversas oficinas totalizando 640 horas de capacitação de mulheres até o momento.
Estabelecer uma rede forte em um país continental como o Brasil pode ser desafiador. Muitas iniciativas acabam ficando muito concentradas no eixo RJ/SP. O IRME quer fortalecer sua atuação em todas as regiões do país? Como o IRME está trabalhando para aumentar a sua capilaridade no Nordeste?
Cíntia Lima – Na verdade, grande parte do nosso público vem do Nordeste. No ano de 2020, 56% das mulheres assistidas pelo Instituto foram dessa região. Garantimos a nossa forte presença graças às voluntárias de diversos estados – mulheres empreendedoras que nos ajudam a difundir os conteúdos e programas do Instituto – e também aos parceiros, especialmente organizações públicas e ONGs.
O tema do empreendedorismo às vezes é tratado por alguns como a solução para todos os problemas, e por outros como algo impossível para a realidade da maioria das pessoas no Brasil. De que forma o IRME encara os diferentes contextos e as desigualdades existentes no Brasil na hora de empreender?
Cíntia Lima – O IRME busca entender o contexto, o perfil das mulheres empreendedoras no Brasil de forma que possam ser direcionadas estratégias que permitam que as mulheres tenham ferramentas e conhecimentos para colocar em prática seus negócios.
Quais são as oportunidades atualmente disponíveis no IRME para as mulheres que querem começar um novo negócio?
Cíntia Lima – Temos diversas oportunidades totalmente gratuitas para mulheres. O Ela Segura oferece capacitação e auxílio para mulheres; o Trampo Dela trabalha com capacitação para mercado de trabalho; já o Potência Feminina aborda empreendedorismo, empregabilidade, tecnologia e auto aceleração; Por fim, o programa Ela Pode, direcionado para mulheres que precisam recuperar ou aumentar a autoconfiança e/ou adaptar seu negócio para o mundo digital.