Opinião

O que mais pode ser feito com e pelas ONGs? Por Daiany França

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“Eu também sou uma pessoa em situação de vulnerabilidade”

Essa frase foi dita por uma gestora de projeto social, que vou chamar aqui de Joana, uma pessoa engajada em amenizar a fome de outras que (sobre)vivem na mesma comunidade – e condições – que ela.

Esse é o retrato do Brasil, está acontecendo neste exato momento, pessoas em situações vulneráveis apoiando outras pessoas vulneráveis.

No Brasil profundo, avassalado, onde o Estado (quase) nunca chega, no último ano, especialmente, são as “Joanas”, em bom número, quem têm cuidado dos 116,8 milhões de brasileiros que estão convivendo com algum grau de insegurança alimentar (isso é mais da metade dos nossos domicílios); são as “Joanas” quem têm ignorado a própria fome para aliviar a fome dos “beneficiários” das suas organizações e projetos; são “elas”, diuturnamente, quem mantém a esperança das pessoas e comunidades de pé.

Seja no Nordeste ou em outras regiões do nosso país, o “impacto” de que tanto falamos passa diretamente pelas mãos das centenas de “Joanas”.

Onde o Estado é omisso, principalmente, as doações de pessoas físicas e de empresas têm feito uma grande diferença, essa é uma verdade irrefutável. O Monitor das Doações COVID 19, até o fechamento deste texto, registrava R$ 6.908.714.231 doados e 684.304 doadores, como já mencionei em outros textos aqui no Impacta Nordeste, são números históricos, embora depois de um “boom” no ano passado, no momento esteja crescendo a passos lentos.

As doações, o que está coerente para o momento, têm endereço certo: enfrentar a COVID 19. Cerca de 40% dessas doações são feitas em produtos ou serviços, o restante em dinheiro. Saúde, por questões obvias, é a causa que mais recebe doações.

A essa altura, você já deve ter se perguntado: “Daiany, aonde você quer chegar com isso?”.

Lembra da Joana? Pois bem, a Joana também precisa comer, se vestir, pagar os boletos… a organização dela precisa pagar aluguel, funcionários, despesas administrativas etc. Só que, quando a doação está chegando, e para as “organizações de base” quase sempre chegam como produto (cestas básicas, principalmente), chega com o “recurso carimbado”, ou seja, já tem destino certo, o que impossibilita a organização de custear até mesmo recursos que ela precisa dispor para as ações de entrega de cestas básicas e materiais de higiene, por exemplo, como é o caso de máscaras, proteção facial, álcool em gel, ajuda de custo dos voluntários e higienização dos espaços, para citar alguns.

A conta não fecha. Aliás, o que está fechando mesmo são organizações como a da Joana, e isso não sou eu quem está dizendo, temos inúmeras pesquisas apontando para um fechamento em massa das organizações da sociedade civil no curto e médio prazo, em especial as de pequeno porte financeiro. E, se elas fecharem de vez, eu te pergunto: quem vai cuidar das pessoas em situação de risco e vulnerabilidade? Quem vai entregar marmita e cobertor para as pessoas em situação de rua? Quem vai oportunizar aulas de esportes, cultura e artes para milhares de crianças e jovens que não têm acesso a esses direitos por outros meios? Quem vai criar projetos de educação e inovação para e com as favelas? Quem vai proteger a Amazônia?.. Dificilmente será por meio de políticas públicas e sociais, porque elas são saqueadas dia após dias.

Agora respondo: o lugar aonde quero chegar é no “fortalecimento das organizações da sociedade civil”. Doar produtos sim, capacitar sim, dar mentoria sim, mas também doar dinheiro para que a organização caminhe rumo à sustentabilidade econômica que ela tanto precisa. Possibilitar que as “Joanas” sejam valorizadas e bem-remuneradas pelo trabalho decente, potente e importante que realizam. 

Se as ONGs são tão úteis ao nosso país, e são, precisamos cuidar melhor delas, em especial daquelas criadas e guiadas por líderes comunitários, que “também estão em situação de vulnerabilidade social”.

A todas elas e a todos eles, o meu respeito, admiração e defesa.

Daiany França Saldanha é cearense, mulher negra, gestora de projetos sociais e empreendedora. É fundadora do Instituto Esporte Mais, gerente do projeto e rede Construindo o Futuro e mestranda do Programa de Pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da USP.