DiversidadeEconomia Criativa

O resgate da cultura negra e a musicalidade do Maracatu Solar

7 mins de leitura

Entre os dias 18 e 21 de fevereiro, o Maracatu Solar se apresentou durante o Ciclo Carnavalesco de Fortaleza 2023, trazendo para a avenida a musicalidade dos batuques, a afirmação da matriz étnica negra, a perspectiva da religiosidade e a reflexão coletiva. 

“A maré mudou, foi Oxumaré, a maré mudou…” Através do batuque que ressoa com ritmos livres e dinâmico, cores vivas, plumagens e brilhos o Maracatu Solar levou para a Avenida Domingos Olímpio o arco-íris de Oxumaré e festejou a mudança de ciclo pandêmico e político durante o Ciclo Carnavalesco de Fortaleza 2023.   

Essa expressão cultural ganhou ares cearenses a partir da popularização de agremiações carnavalescas dedicadas a difundir a estética e a rítmica dentro do circuito de carnaval na cidade. De acordo com o historiador Gabriel Cabral e autor no portal de conteúdo Negre, “os primeiros maracatus registrados no Ceará datam de 1880, todavia só ganharam força no fim da terceira década do século XX, a partir de 1930.”

Assim como o samba, a capoeira e outras manifestações culturais e religiosas negras, o maracatu também foi perseguido e reprimido pelo Estado após a abolição da escravatura. Outra teoria bastante difundida tem um caráter político, de oposição aos discursos de branqueamento do Ceará, que buscavam negar a presença de negros no processo histórico de construção do Estado.

“A experiência do festejo de maracatu aqui no Ceará tinha a ver com um desejo que a suposta liberdade alcançada com a assinatura da abolição não dava conta. Os brincantes, negros, queriam mais: autonomia. Maracatu era sobre a suspensão das amarras, era o momento do sonho com a emancipação”, explica Gabriel. 

Apesar da ampla penetração no meio social, foi apenas em 2015 que o maracatu se tornou patrimônio imaterial de Fortaleza. O importante passo sedimentou a resistência e a dimensão desse fazer diverso e pulsante, responsável por unir pessoas de diferentes credos, classes e gerações numa mesma dinâmica de fortalecimento identitário.

Associação Cultural Solidariedade e Arte – SOLAR

Nesse contexto de exaltação da cultura popular e afro-brasileira destaca-se a Associação Cultural Solidariedade e Arte – SOLAR que desenvolve programas e projetos na área da cultura com cinco linhas de atuação: formação, difusão, assessoramento, produção e programa de solidariedade.

Fundada em 2005 pelo cantor e compositor João Wanderley Roberto Militão, conhecido como Pingo de Fortaleza, a Solar trabalha muito forte com uma visão que não é ditada pelo mercado. A instituição tem a missão de democratizar e heterogeneizar, aglutinando pessoas nessa perspectiva de produção e do acesso ao que foi produzido culturalmente.

Os projetos da Solar compreendem as formações da Orquestra Solar de Tambores, com ensaio todos os sábados; a Cia Solar de Dança, encontro todas as segundas e o Maracatu Solar, com um ensaio aberto por mês aos sábados à noite e apresentações cotidianas. O programa “Solar em Parceria” realiza atividades em parceria com outros grupos e instituições. Às terças e quintas ocorre a parceria com a Capoeira Angola Òrun Àiyé, na quarta com Chacoalha Xequerê e na sexta com o Espaço Brasileiro de Artes (EBA).  

“A Solar através de seus programas de formação atua de forma ímpar e incisiva no ciclo carnavalesco da cidade há 17 anos. A criação e a produção dos eventos Tambores Ancestrais na Noite Escura, Brincar de Maracatu e Batuque dos Encantados se inserem de forma referencial as simbologias das religiões de matriz africana e indígena sempre agregando valores a esse momento cultural brasileiro”, explica Pingo. 

Todo esse conjunto de atividades passa por um grande planejamento que vai desde a manutenção da sede, a elaboração de projetos, convocação de colaboradores de diversas áreas e produção da logística de toda essa estrutura que envolve um conjunto significativo de pessoas, demandas e especificidades. 

“Esse ano de 2023 em seu ciclo carnavalesco, a Solar mobilizou aproximadamente 300 brincantes e dezenas de milhares de pessoas em suas diversas atividades, tais como cinco rodas de conversas, cinco ensaios abertos, dois ensaios de cortejos, três cortejos, 25 oficinas e 15 shows. Acreditamos que a Solar cumpriu com excelência sua missão social nesse ciclo.” 

Expressão da própria existência 

O fôlego de resistência dos maracatus é forte e se perpetua por anos. O Az de Ouro já tem 85 anos e o Rei de Paus completou em janeiro 68 anos de fundação. Uma longevidade que também se explica pela dimensão simbólica e por vivências de afeto. Os maracatus são formas de expressão da própria existência para muitas pessoas. 

Famílias de duas, três gerações participam dos grupos; amizades e casamentos surgem na convivência motivada pela prática. Os brincantes ressignificam o próprio cotidiano e a figuração social, naquele instante da festa, afastam-se do papel primeiro vivenciado por difíceis condições de existência. 

O fundador da Associação Solar fala sobre o jeito acolhedor e participativo que passa por uma visão da entidade de um processo cultural inclusivo e transformador. “Qualquer pessoa pode participar da Solar, nós não buscamos um tecnicismo artístico, queremos fazer arte com todos que querem. Isso gera cidadania, auto afirmação, empoderamento das pessoas em relação às suas linguagens artísticas, identidade, e também de cura no sentido mais geral, pois nesse processo as pessoas encontram um apoio emocional, espiritual e afetivo.”

Um dos pilares do trabalho da associação é o Maracatu Solar que tem sua musicalidade inspirada nos batuques do Maracatu Az de Ouro das décadas de 1940 e 1950, o pioneiro em Fortaleza. “Temos criado um maracatu mais dinâmico, mais ativo, que aglutina mais gente. Uma dessas características é a diversidade rítmica mais livre.” 

O movimento também tem discutido a reafirmação negra e estabeleceu uma liberdade de não pintar o rosto como forma de afirmação da matriz étnica negra de manifestação. 

“Além disso, indagamos sobre a necessidade do negrume (pintura dos rostos de preto, representando os negros no Ceará), característica do maracatu cearense. Até porque uma parte do movimento negro já questionava essa pintura no rosto, como forma de caricatura, de um negro que supostamente não tivesse existido na matriz cearense. Mas tudo isso foi superado pelos estudos recentes, pelas descobertas das heranças culturais, da existência das comunidades quilombolas”, afirma Pingo de Fortaleza. 

O Maracatu Solar nasceu nessa perspectiva da religiosidade e depois assumiu características mais conflitantes com o status quo. “Não participamos do Carnaval de competição, e sim de participação; não coroamos a Rainha e não participamos da coroação de Nossa Senhora do Rosário. Também questionamos a própria data do Dia do Maracatu (25 de março de 1884), no dia que oficializaram o fim da escravidão no Ceará. Não é uma data da emancipação das lutas dos negros, mas sim um decreto.”

Para Pingo, tudo isso é o Solar, uma reflexão coletiva permanente. “Temos essa preocupação de não ser um grupo de exibição, mas um grupo em que as pessoas assistem e participam. Participamos dos desfiles dos maracatus no Carnaval de Fortaleza com mais de 300 brincantes que fazem parte dos nossos programas e nenhum é profissionalizado.” 

“Mas temos outras ações. Neste ano, tivemos uma participação contínua dos tambores ancestrais, uma festa de caráter religioso, de matriz africana, cruzamentos dos tambores, brincar de maracatu trazendo o lúdico, além disso, fizemos um projeto paralelo aos desfiles oficiais. Já tivemos com o maracatu em duas comunidades quilombolas, mais duas comunidades indígenas e nos bairros periféricos de Fortaleza”, finaliza. 

Recursos financeiros

A última folia carnavalesca oficialmente realizada ocorreu pouco antes da pandemia de Covid-19, em fevereiro de 2020. Três anos depois, o carnaval de rua de Fortaleza retornou aos espaços públicos da Capital. Neste ano, a Prefeitura lançou o Edital de Concessão de Apoio Financeiro aos Blocos de Rua Independentes do Ciclo Carnavalesco de Fortaleza 2023, que contemplou 50 projetos com um valor total previsto de R$ 650.000,00. 

No entanto, os recursos financeiros ainda é um grande entrave para os maracatus e pode enfraquecer a ressonância da tradição na sociedade. Pingo de Fortaleza, lembra que a cidade tem 15 maracatus: “Cada agremiação tem mais de 100 brincantes, é muita gente envolvida na produção desses grupos. É preciso ter editais específicos para essa categoria, de compreensão desse segmento, de propiciar, dar visibilidade”, pontua.

O programa Solar é contínuo. Além de promover a formação cultural da juventude, a associação produz festivais como o Vila Sonora, Fortaleza Instrumental, Festival da Meruoca e Tambor Crioula. E alguns projetos no campo da literatura, como o dicionário sobre a arte cearense. As atividades são gratuitas e as parcerias com grupos e entidades que acontecem na sede da instituição tem valores colaborativos. 

Informações

Associação Cultural Solidariedade e Arte – SOLAR
Endereço: Av. da Universidade, 2333 – Benfica, Fortaleza – CE, 60020-180
Telefone: (85) 3226-1189
Instagram: @maracatusolar @pingo_de_fortaleza

Sara Café, é graduada em Comunicação Social/Jornalismo, especialista em assessoria de comunicação e formação em fotografia. Atua na área de inovação e impacto social através de trabalhos de jornalismo, redação e produção de conteúdo, mídias sociais, assessoria de imprensa e coberturas fotográficas. Bolsista de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação no Laboratório de Inovação do SUS no Ceará (2021) e do Observatório de Educação Permanente em Saúde (2022), projetos da Escola de Saúde Pública do Ceará. Produz entrevistas e matérias jornalísticas especializadas para o hub de negócios TrendsCE. Voluntária e Diretora de Comunicação do Instituto Verdeluz (gestão 2019 a 2022) e membra da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência), da Rede Narrativas e integrante da Rede Linguagem Simples Brasil.

Sara faz parte da Rede de Jovens Lideranças de Impacto do Nordeste.