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117 anos do Poço da Draga: entre lutas e memórias do território 

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Em meio às transformações de uma cidade em pleno desenvolvimento, uma comunidade centenária de Fortaleza tem resistido unida ao longo do tempo à falta de infraestrutura, mantendo vivas as tradições, as memórias e a relação afetiva com o território.

“Tem gente na calçada aqui até hoje. A rua é cheia de menino. Aqui é perto de tudo, só não tem tudo aqui”, diz Nilce Costa Vasconcelos, 87 anos, moradora mais antiga da comunidade do Poço da Draga, enquanto posava para uma turma de fotógrafos que visitava a comunidade. 

O Poço da Draga completou 117 anos na última sexta-feira (26/05), é uma das ocupações populacionais mais antigas da cidade, localizado na Rua dos Tabajaras, próxima ao Centro Cultural Dragão do Mar, Caixa Cultural Fortaleza e a Indústria Naval do Ceará (INACE). 

Ligada à história de Fortaleza e às tentativas de estabelecer um porto para a cidade, as primeiras casas abrigaram pescadores, marisqueiras, portuários e migrantes do interior que fugiam da seca em busca de melhores condições de vida.

O Poço da Draga, que completou 117 anos, é uma das ocupações populacionais mais antigas de Fortaleza (CE) (Foto: Sara Café)

O geógrafo Sérgio Rocha, mais conhecido como Serginho, narra com propriedade a história do lugar onde nasceu e cresceu. “O dia 26 de maio 1906 é considerado como marco originário da comunidade por ser a data da inauguração do antigo porto da cidade, a atual Ponte Metálica. Adotamos a data por ser lógico de que nesta época um pequeno núcleo de pessoas começou a se formar. Até porque eles davam suporte às atividades portuárias. Era a vendedora de café, o pescador, o estivador”, conta.

O que permanece sem alteração é a falta de saneamento básico, as demandas por espaços culturais e assistência básica à saúde. Água encanada, por exemplo, só chegou na comunidade em 1980 e até hoje não tem rede de esgoto. No entanto, as atribulações encontradas no caminho não abalam os moradores que veem na luta diária um mecanismo contra o apagamento e a invisibilidade por parte do poder público. 

“Estamos segregados do mundo, porém conectados com ele por meio das pessoas.”

“Estamos segregados do mundo, porém conectados com ele por meio das pessoas. Atrás da Caixa Cultural, tem um muro que limita o equipamento, e que poderia ser um gradil com portão aberto para a comunidade ter acesso a cultura. Aí eles dizem assim: o Poço da Draga é uma comunidade que está no entorno do Dragão do Mar. Eles é que estão no nosso entorno, porque nós estamos aqui há mais de 100 anos”, destaca Serginho. 

Alvo da especulação imobiliária, o Poço da Draga já passou por sucessivas tentativas de remoção. Em grande parte, esse esforço de extinguir a comunidade centenária está relacionado a uma visão de organização de cidade que reserva certos espaços urbanos para o lazer das camadas abastadas da sociedade e para a exploração da atividade turística, não havendo lugar para as comunidades, sistematicamente relegadas às periferias urbanas.

O morador realiza visitas guiadas pela comunidade e também integra o conselho gestor da Zona Especial de Interesse Social (Zeis) do Poço da Draga. Conforme a lei do Plano Diretor, a Zeis deve ser prioridade para receber melhorias urbanas e regularização fundiária. Serginho avalia que essa conscientização política foi um dos amadurecimentos absorvidos pelos moradores com o tempo. “A consciência das pessoas mudou. Elas estão mais empoderadas do seu direito à moradia de qualidade”, afirma.

Em março de 2022, barracas de comércio informal da Praia do Poço da Draga, construídas por moradores da comunidade, foram demolidas pela Prefeitura de Fortaleza. Alguns comerciantes afirmaram que perderam eletrodomésticos e móveis e, segundo eles, a derrubada não foi informada previamente pelos órgãos municipais.

Por sua vez, a Prefeitura disse que iria emitir uma autorização em caráter emergencial para que os comerciantes continuassem trabalhando na área, mas com o compromisso de manterem a limpeza do espaço, terem cuidado com o descarte dos resíduos e não realizarem novas construções irregulares no local, por se tratar de uma área de proteção ambiental.

O salto da Ponte Velha é uma das atividades de lazer para os jovens da comunidade. (Foto: Sara Café)

Outra marca registrada do Poço da Draga e opção de lazer para os jovens da comunidade é o salto da Ponte Velha, também conhecida como Ponte Metálica. “Existem atividades que são feitas no local. O pulo da ponte é muito comum para nós, moradores da comunidade. Nós não aprendemos a andar, a gente aprende a nadar primeiro. E a contemplação do pôr do sol mesmo, porque a gente tem o pôr do sol mais lindo de Fortaleza”, afirma Cássia Vasconcelos, articuladora social e presidente da Associação dos Comerciantes da Praia.

Dentre as propostas da Prefeitura de Fortaleza para requalificação da Praia de Iracema, está a de construir uma plataforma para saltos e um mirante no “mini” espigão próximo à Ponte Velha que será revitalizado. O projeto foi anunciado pelo prefeito José Sarto (PDT) em janeiro deste ano.

Mas os moradores ainda olham com desconfiança para o projeto, principalmente, pela falta de diálogo com a gestão municipal. A requalificação não foi debatida com a comunidade e não atende às necessidades antigas da área, como a falta de saneamento básico ou estruturas para o forte movimento cultural que já acontece no Poço da Draga.

“Milhões que serão gastos ali e dentro da comunidade a gente não tem saneamento básico. Ao mesmo tempo que a gente quer resistir, se a gente for contra, nada acontece”

“O projeto é em um formato estético que não condiz nem com a natureza do local, que é um local portuário. Deveria ter sido feito um concurso de ideias para escolher o formato estético do equipamento”, opina Sérginho. Já para Cássia, o projeto é mais um que modifica a identidade visual do espaço. “Milhões que serão gastos ali e dentro da comunidade a gente não tem saneamento básico. Ao mesmo tempo que a gente quer resistir, se a gente for contra, nada acontece”, afirma.

Por saberem que o local onde moram cada vez mais faz parte de um processo de tentativas para o “enobrecimento” do espaço litorâneo voltado para o turismo, as opiniões de muitos moradores se alternam em que possam haver melhorias futuras ou que haja uma inevitável remoção completa em anos de abandono gradativo. 

A história do Poço da Draga é construída pelo senso de coletividade e os laços de consanguinidade dos moradores. (Foto: Sara Café)

“É maravilhoso morar aqui. É carro, é moto, é gente indo para praia, o movimento é grande. Mas também já mudou muito. Antes as casas eram todas de madeira, o trem passava aqui na porta de casa, a gente chamava Maria Fumaça, e os pescadores iam buscar a mercadoria. Tudo se transformou e melhorou, então nos próximos anos pode ser que melhore sim”, completa com otimismo D. Nilce. 

Mas para Serginho, o setor público ainda precisa ter olhar para os interesses das periferias. “Que insulto é esse que a gestão pública faz com os moradores da comunidade? Não temos o direito de saber como será esse projeto de requalificação? Onde está a Lei de Transparência? A gente está vendo o progresso vindo, mas ele não está entrando. Fica só no entorno. A Prefeitura afirma que isso aqui é um projeto especial. Mas é para quem? É um projeto para a cidade. E nós, moradores, não somos especiais?”, questiona. 

Se o Poço da Draga resiste e chega aos 117 anos, mesmo em uma das áreas mais valorizadas da Capital, sua história é construída segundo a filosofia do “nós por nós”, pelo senso de coletividade e os laços de consanguinidade dos moradores.

Sara Café, é graduada em Comunicação Social/Jornalismo, especialista em assessoria de comunicação e formação em fotografia. Atua na área de inovação e impacto social através de trabalhos de jornalismo, redação e produção de conteúdo, mídias sociais, assessoria de imprensa e coberturas fotográficas. Bolsista de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação no Laboratório de Inovação do SUS no Ceará (2021) e do Observatório de Educação Permanente em Saúde (2022), projetos da Escola de Saúde Pública do Ceará. Produz entrevistas e matérias jornalísticas especializadas para o hub de negócios TrendsCE. Voluntária e Diretora de Comunicação do Instituto Verdeluz (gestão 2019 a 2022) e membra da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência), da Rede Narrativas e integrante da Rede Linguagem Simples Brasil.

Sara faz parte da Rede Impacta Nordeste.