O Dia da Economia Solidária é um lembrete que outras economias acontecem e que alternativas para o desenvolvimento são fundamentais para ingressarmos em uma nova era de sustentabilidade ambiental e social. Em meio a crises econômicas e políticas, analisamos a evolução desse modelo, seus desafios e como uma aproximação com outros ecossistemas, como os negócios de impacto social, pode ajudar a fortalecer essa agenda.
*Feira de economia solidária na Paraíba (foto: Alberto Machado)
Dia 15 de dezembro. A Economia Solidária no Brasil, desde 2019, tem um dia para chamar de seu. Mas isso não é suficiente, o que ela precisa mesmo é gestores públicos sérios e comprometidos com o desenvolvimento de territórios e das capacidades dos homens e mulheres, que estão no campo ou na cidade, produzindo efetivamente riquezas em nosso país.
Segundo o levantamento realizado pela Austin Rating (2021), o Brasil possui a 4ª maior taxa de desemprego do mundo. No país registra-se aproximadamente 14 milhões de desempregados. A pandemia de Covid-19 contribuiu sobremaneira para o índice alarmante, entretanto, a crise já afeta a classe trabalhadora do país muitos anos antes do coronavírus se proliferar pelo mundo. O modo de produção capitalista, as políticas neoliberais e a intensificação da automação no mundo trabalho são os motores desse sistema que há muito tempo já sabe ser insustentável.
Outras economias acontecem e elas não coadunam com lógica perversa do capital, pelo contrário, elas contribuem para a superação de desigualdades abissais de renda, poder e conhecimento presentes na sociedade, que muitas anulam a diversidade regional, cultural, etária e de gênero. Nesse sentido convém ressalta a Economia Solidária, que reflete um paradigma econômico plural que reconhece, acolhe e inclui as diferenças, que respeita o meio ambiente e que defende a prosperidade para todos!
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2016), a Economia Solidária impacta atualmente aproximadamente 20 mil empreendimentos (cooperativas, grupos de produtores e organizações colaborativas) que agregam cerca de 14 milhões de pessoas e movimentam aproximadamente 3% do Produto Interno Bruto -PIB.
A Economia Solidária é a economia do protagonismo comunitário, do trabalho coletivo, do bem-viver. Ela resgata sentidos compartilhados de coexistência, que preconiza a justiça social, que instaura a participação e que fortalece o ideal democrático, fundamental à dinâmica sadia das organizações. Ancora-se nos princípios da autogestão, democracia, solidariedade, cooperação, respeito à natureza, comércio justo e consumo solidário.
A ECONOMIA SOLIDÁRIA NÃO É UMA NOVIDADE NO BRASIL
A solidariedade é geralmente evocada em contextos de crises sociais, econômicas e humanitárias. É um valor, um imperativo que une mais do que separa os homens e mulheres em diferentes contextos organizacionais. Ela integra a essência humana. Serve lastro a construção de um outro mundo possível. Está presente na gênese das organizações e é um importante ativo nas relações econômicas, um pilar para novas economias emergentes.
O debate sobre a Economia Solidária ganha maior notoriedade no Brasil a partir da década de 1980, momento da redemocratização, e onde do ponto de vista global registra-se um cenário de estagnação econômica e de reestruturação dos processos de produção e acumulação capitalista.
Na década de 1990, nota-se a emergência e consolidação de iniciativas que foram fundamentais para se construir um lastro que anos mais tarde dariam todo suporte ao desenho e implementação de políticas públicas de Economia Solidária, foram elas: a fundação da Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão (ANTEAG); as ações realizadas pelo Movimento Sem Terra de fomento à agricultura familiar; a constituição da UNITRABALHO e a criação da Rede de Incubadoras de Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPS), importantes instrumentos para o fortalecimento das capacidades intelectuais e produtivas e de criação de novas mecanismos de finanças acessíveis e solidárias.
Os anos 2000 foram marcados por relevantes conquistas na agenda pública, e para tanto, ressalta-se os espaços de democráticos, de interlocução e de governança participativa, essenciais à ampliação da capilaridade do debate e da viabilização de ações em distintas esferas, foram eles: a constituição do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, as primeiras edições do Fórum Social Mundial e da Conferência Nacional de Economia Solidária, a criação da Rede de Gestores de Políticas Públicas de Economia Solidária, experiências concretas que tencionaram e serviram de base para criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), bem como do Conselho Nacional de Economia Solidária (CNES).
Já a década de 2010 foi marcada pela materialidade do que muito se discutia a décadas e por significativas conquistas:
- 2011: a Política Nacional da Economia Solidária integrou as estratégias de inclusão socioprodutiva visando a erradicação da pobreza extrema, por meio do Plano Brasil Sem Miséria;
- 2013: Política Nacional de Economia Solidária (SENAES/MTE) institui o termo de referência com foco no apoio à implantação de ações integradas de economia solidária como estratégia de promoção do desenvolvimento territorial sustentável visando à superação da extrema pobreza.
- 2012 – 2015: Previsão no Plano Plurianual (PPA), da política nacional de economia solidária previu em dois dos seus objetivos estratégicos: (i) Fortalecer a institucionalidade da política nacional de economia solidária, a articulação federativa e a integração das políticas de promoção das iniciativas econômicas solidárias nos processos territoriais sustentáveis e solidários de desenvolvimento”. (ii) Fomentar e fortalecer empreendimentos econômicos solidários e suas redes de cooperação em cadeias de produção, comercialização e consumo por meio do acesso ao conhecimento, crédito e finanças solidárias e da organização do comércio justo e solidário.
- 2019: Instituição do Dia Nacional da Economia Solidária e a defesa da PEC69/2019 que propõe a inclusão da Economia Solidária entre os princípios da Ordem Econômica.
França Filho e Eynaud (2020) destacam que nesse período houve o fortalecimento do campo da Economia Solidária viabilizando ações multiplicação e diversificação das iniciativas, regulamentação de suas formas de organização através da nomenclatura Empreendimentos Econômico-Solidários, fortalecimento da atuação de Entidades de apoio (a exemplo das incubadoras tecnológicas), constituição de fóruns e redes, e implementação de políticas públicas em diferentes esferas governamentais.
No Estado da Paraíba existiam muitas iniciativas realizadas pelo movimento social, mas em se tratando de política pública, a Economia Solidária passou a acontecer efetivamente a partir do ano de 2014 com início do projeto Ações Integradas em Economia Solidária executado pelo Governo Estadual, nas seguintes frentes: catadores de resíduos sólidos, finanças solidárias, agricultura familiar e artesanato. Essa experiência demandou a criação da Secretaria Executiva de Segurança Alimentar e Economia Solidária. Implantamos as Casas de Economia Solidária em várias regiões do estado com o objetivo de ampliar a visibilidade e a comercialização dos produtos dos empreendimentos solidários, e desde 2019, estamos canalizando esforços para consolidar atuação do Cento Público Estadual de Economia Solidária.
RODRIGO ITIÚBA | Gerente do Centro Público Estadual de Economia Solidária
Os ganhos desse posicionamento político foram inúmeros: a economia solidária passou a integrar as estratégias de fomento ao desenvolvimento territorial, sustentável e solidário, sobretudo em territórios vulneráveis. Os estados acessaram recursos para viabilizar a implantação de espaços físicos multifuncionais para oferta de serviços de incubação, assistência técnica especializada aos empreendimentos econômicos solidários na qualificação e comercialização dos seus produtos. Os Empreendimentos Solidários experimentaram novos canais de comercialização, bem como, acessaram e deram concretude a novos dispositivos de finanças solidárias (Bancos Comunitários de Desenvolvimento, Fundos Rotativos Solidários, Cooperativas de Crédito Solidário, Poupança Comunitária e microcrédito produtivo orientado).
Os efeitos das políticas de Economia Solidária, em sua maioria atentos e marcados por interseccionalidades, tendo em vista a diversidade dos seus destinatários, conquistaram ainda mais visibilidade: populações campesinas produzindo mais e com qualidade, industrialização dos produtos e acesso a mercados de valor, elevação do padrão de qualidade dos artesanatos e manualidades, cuidado com o meio ambiente, elevação do capital intelectual e fortalecimento do tecido social. O paradigma de desenvolvimento pautado na justiça e na prosperidade estava fazendo parte da realidade daqueles que realmente produzem riquezas nesse país.
DESCAMINHOS E RESISTÊNCIA
Em que pese, alguns registros recentes no âmbito institucional, a exemplo, da instituição do Dia Nacional da Economia Solidária, em 2019, as políticas deste setor encontram na atual conjuntura político-econômica do país, lacunas e retrocessos que refletem o desamparo político-institucional, a ausência de um ação articulada entre os entes federativos, por opção de governo federal, falta de dotação orçamentária e intencional desarticulação das políticas que fomentam a agricultura familiar e a comercialização nos mercados institucionais.
A extinção do MTE e a migração de ações da antiga Senaes para o Ministério da Cidadania, a redução das competências das políticas e Economia Solidária à política de assistência social e de renda são expoentes da ação sistemática de desconstrução da perspectiva da economia solidária como uma estratégia de desenvolvimento.
Na vacância de uma política nacional, os Estados e Municípios comprometidos com o desenvolvimento dos cidadãos e dos seus territórios assumem o protagonismo das ações de fomento, desenho, implementação e avaliação das políticas de Economia Solidária. O Nordeste se consolida como um território de resistência, onde esse paradigma econômico acontece e onde suas raízes ganham mais amplitude e profundidade.
Importante frisar que estratégias de municipalização do debate e da construção de legislações específicas, vem sendo adotada em todo o país, e são apoiadas por legítimos espaços de interlocução, como é o caso da Rede Gestores de Políticas Públicas da Economia Solidária.
A Rede de Gestores é um articulador do movimento da participação dos gestores de políticas públicas na luta pela ampliação da economia solidária em nosso país. Acreditamos na potência dos municípios e nas suas capacidades para protagonizarem um desenvolvimento pleno tendo a economia solidária como estratégia, pois ela dialoga com a agricultura familiar, com o meio ambiente, com o desenvolvimento da presença da mulher na gestão pública, contra o racismo, propiciar uma dignidade de vida para a população mais vulnerável precisa lutar pelos seu desenvolvimento”.
JAIRO SANTOS | Secretário Executivo da Rede de Gestores
Estados e municípios têm sido palco dos Festivais, Feiras, seminários, rodadas de negócios, clubes de trocas, modelos participativos de certificação dos produtos, criação de circuitos curtos de comercialização, acesso aos mercados institucionais, capacitações e de articulações para assegurar que os municípios garantam a institucionalidade na Economia Solidária em legislações contextualizadas à suas realidades.
RESISTIR, ESPERANÇAR, SEMPRE!
Por estimular a produção, o consumo e a valorização de riquezas com foco no ser humano, uma proposta de Emenda Constitucional (PEC69/2019) pretende incluir a economia solidária entre os princípios da Ordem Econômica Nacional, no art. 170 da CRFB/88, atualmente possui nove, são eles: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país.
A ordem econômica é um conjunto de determinações que regulam as atividades econômicas: comerciais, industriais, serviços privados e públicos, fundamentadas na valorização do trabalho humano e a livre iniciativa.
Essa inserção será um marco que reforçará a regulação e novas institucionalidades, sobretudo, no campo das políticas públicas. O projeto é defendido pelo Senador Jaques Wagner, que já construiu um importante legado no campo das políticas de Ecosol, e foi o responsável pela Lei Estadual de Ecosol, no Estado da Bahia.
A economia solidária é incipiente na ordem econômica real, apesar de sua importância social. Precisamos de políticas públicas para incentivar e estimular a área. Sendo assim, a sua inclusão entre os princípios de ordem econômica ajudará o setor a ser parte mais relevante da economia brasileira, estimulando a produção, o consumo e a distribuição de riqueza, com foco na valorização das pessoas.
JAQUES WAGNER | Senador, Propoente da PEC 69/2019
A PEC 69/2012 está ganhando aderência no Senado Federal, e no dia 16 de dezembro de 2021 foi aprovada no, em primeiro turno, com 56 votos a favor, 9 contra e 0 abstenções. A tramitação está sendo acompanhada com muito entusiasmo pelos Empreendimentos Econômicos Solidários, políticos e militantes que há décadas estão engajados na conquista de direitos nesse campo.
DESAFIOS
É perceptível que os empreendimentos econômicos solidários não possuem acesso a subsídios e condições crédito com a mesma proporção que oferecidas aos grupos empresariais. Por isso, a aproximação com os ecossistemas de negócios de impacto e de inovação social pode ser um caminho para potencializar as iniciativas de economia solidária e para reduzir os impactos das incertezas referentes aos investimentos neste campo. A interação com negócios de impacto poderá contribuir a formalização das atividades produtivas, a apropriação e uso de novas linguagens e tecnologias digitais, a validação da viabilidade técnica e econômica e para a aceleração dos ciclos de desenvolvimento de produtos alinhados aos requisitos legais, fiscais e sanitários basilares à conquista nos circuitos de comercialização em mercados de valor.
Superar os desafios da mensuração do impacto, a partir da formulação de métricas de desempenho claras e objetivas, de modo a evidenciar os avanços na sustentabilidade da atividade econômica em sintonia com os ganhos não monetários se impõe como uma alternativa para atrair a atenção de investidores dispostos a direcionar recursos que possam fortalecer ainda mais a causa e os instrumentos de finanças solidárias existentes.
INDICAÇÂO DE LEITURA
Lançado pela EDUFBA, em dezembro de 2021, o livro Economia Solidária e Políticas Públicas: novos olhares sobre a inclusão socioprodutiva é fruto da imersão da pesquisadora Adriana Vilas-Boas Borges no universo da Rede Mata Atlântica, que reúne centenas de empreendimentos solidários no território de identidade Baixo Sul da Bahia, ao longo do mestrado em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia. O livro a aborda a relação entre Economia Solidária, Políticas Públicas, Avaliação e traz uma abordagem diferenciada: o dos usuários/destinatários de políticas públicas de assistência técnica e inclusão socioprodutiva, que devem integrar os desenhos e a implementação das políticas em si, e dos processos avaliativos formatados para mensurar os seus impactos.
Os impactos socioeconômicos e ambientais da Economia Solidária devem ser conectado a pautas relevantes e globalmente conhecidas, a exemplo dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, Agenda do Trabalho Decente, Consumo Responsável, que para a sociedade de modo geral soam como novidade, mas que na prática integram a gênese dos empreendimentos econômicos solidários e cujos princípios são vividos cotidianamente, e que tem sido e serão de grande utilidade para a recuperação econômica no pós-pandemia de covid-19.