Opinião

Economia com justiça, solidariedade e competitividade. Sim, é possível!

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Você conhece quem produz o alimento que você consome? Quem confecciona as roupas que você veste? Antes de questionar o preço de um artesanato ou manualidades você reflete sobre o tempo dedicado à sua produção, bem como a exclusividade da peça? Você sabe, realmente, se o alimento que você consome está livre de agrotóxicos? Se preocupa com a dignidade e a qualidade de vida das pessoas envolvidas na cadeia de valor ligadas aos produtos que você consome?

Existem diferentes economias comprometidas com respostas positivas às questões acima. Sim, outras Economias acontecem! Você não precisará esperar o capitalismo se reinventar para poder contribuir de forma justa com o planeta. Por isso, nesse artigo lhe convido a conhecer um pouco mais sobre a Economia Solidária.

A Economia Solidária ou Economia Social e Solidária, também conhecida como “Outra Economia”, traduz-se na materialização de iniciativas, de natureza cooperativista e associativista, gestadas em todo o mundo, que baseiam suas relações econômicas na produção sustentável, na comercialização justa, na equidade racial e de gênero, nas finanças solidárias, no consumo responsável e no ideal democrático. Para conhecer com profundidade o seu histórico, vale muito a pena ler o livro “Introdução à Economia Solidária”, de Paulo Singer (Clique aqui para baixar).

A Economia Solidária é a economia popular, da diversidade, da inclusão e do compromisso ético com a natureza. Não pode ser considerada nova, nem como exclusivamente uma alternativa à economia capitalista, pois sempre existiu e sempre existirá.

É a economia que efetivamente produz riquezas, e não a que especula, a que tudo financeiriza, a que vive da comercialização papéis. Sobre essa questão, convém conhecer a obra A Era do Capital Improdutivo, do Ladislaw Dowbor (Clique aqui para baixar).  É a economia do protagonismo comunitário, do trabalho coletivo, do bem-viver. Ela resgata sentidos compartilhados de coexistência, que preconiza a justiça social, que instaura a participação e que fortalece o ideal democrático, fundamental à dinâmica sadia das organizações.

Por seu caráter popular e por suas abordagens contextualizadas nos fluxos de vida, a Economia Solidária naturalmente contribui decisivamente para a superação de muitas desigualdades (renda, poder, conhecimento, gênero, etária, regional) presentes na sociedade e para a construção de realidades prósperas para distintos grupos sociais, ao:

  • Aproximar Empreendimentos Econômicos Solidários a consumidores finais, mercados convencionais, institucionais e redes de comercialização;
  • Estreitar relações entre produtores dos consumidores, consolidando novas estratégias, redes e circuitos de comercialização, e estimulando adoção práticas do consumo responsável.
  • Fomentar o experimento de novas instrumentos de finanças solidárias: fundos rotativos, bancos solidários, cooperativismo de crédito.
  • Fortalecer a autogestão, a atuação em rede, a democracia, a solidariedade, a cooperação, o respeito à natureza, o comércio justo e o consumo solidário.

Segundo França Filho (2014) a Economia Solidária tem a capacidade em articular redes locais na promoção de alternativas efetivas e sustentáveis de desenvolvimento territorial diante dos impasses e limites apresentados pela dinâmica de mercado. Por isso, convém firmar que ela contribui para a ressignificação das suas relações de mercado, amplia o diálogo e orienta o planejamento de novas formas de ação pública que fomentem novas economias e relações econômicas convergentes com a garantia do direito ao trabalho associado.

A solidariedade na economia só pode se realizar se ela for organizada igualitariamente pelos que se associam para produzir, comerciar, consumir ou poupar. A chave dessa proposta é a associação entre iguais em vez do contrato entre desiguais.

(Singer, 2002, p.9)

É a economia que fomenta a geração de trabalho, emprego e renda para um número significativo de pessoas. Um caminho possível frente à crise do emprego ocasionada pelos avanços da automação, da computação e telemática, que tem precarizado as relações de trabalho e de forma severa vem eliminando postos de trabalho.

Quadro 1 – Ecossistema da Economia Solidária

EMPREENDIMENTOS ECONÔMICOS SOLIDÁRIOS
Movimentos/ OrganizaçõesCooperativas de…Finanças SolidáriasEmpresas
associação de produtores autônomos entre siclubes de trocas ONGs (entidades de assessoria e fomento)produtores autônomos entre siprodução ou trabalhoprestação de serviços de agentes autônomosconsumocréditofundo rotativo/banco comunitárioempresas recuperadas ou autogestionadas por trabalhadores
Fonte: Elaborado a partir de SILVA; CARNEIRO (2020)

No Brasil, a Economia Solidária conquistou relevância na agenda pública no período de 2003 e 2016, quando da vigência da Secretaria Nacional de Economia Solidária, então ligada ao Ministério do Trabalho. França Filho e Eynaud (2020) destacam que nesse período houve o fortalecimento do seu campo viabilizando ações multiplicação e diversificação das iniciativas, regulamentação de suas formas de organização através da nomenclatura Empreendimentos Econômicos Solidários, fortalecimento da atuação de Entidades de apoio (a exemplo das incubadoras tecnológicas), constituição de fóruns e redes, e implementação de políticas públicas em diferentes esferas governamentais.

Segundo dados do INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (2016), a Economia Solidária impacta atualmente aproximadamente 20 mil empreendimentos (cooperativas, grupos de produtores e organizações colaborativas) que agregam cerca de 14 milhões de pessoas e movimentam entre 3% e 8% do Produto Interno Bruto -PIB[1] .

Para demonstrar os impactos gerados pela Economia Solidária, trago algumas iniciativas, que associadas aos dados supracitados, tangibilizam localmente, os macros indicadores do setor:

  • Centros Públicos de Economia Solidária (Cesol): implementada pela Superintendência de Economia Solidária e Cooperativismo – SESOL, no âmbito da Secretaria de Trabalho, Emprego, Renda e Esporte da Bahia, essa política pública melhora a capacidade gerencial, empreendedora e socioprodutiva dos Empreendimentos Econômicos Solidários, contribui para a melhoria e agregação de valor dos seus produtos, apoia a inserção dos produtos em mercados convencionais e institucionais, fomenta a gestão de redes de comercialização e estimula o consumo responsável. Atualmente os Cesols estão presentes em 13 territórios de Identidade do Estado da Bahia, atendem a 1.744 Empreendimentos, impactam indiretamente cerca de 15 mil, e indiretamente 60 mil pessoas.
  • Instituto Banco Palmas: Fundado em 1998, fruto de uma ampla mobilização e cuidadoso planejamento dos moradores no Conjunto Palmeira, um bairro que à época contava com 25 mil habitantes, localizado na periferia de Fortaleza. Liderado por Joaquim Melo, o Instituto Banco Palmas sempre teve a sua atuação alinhada aos princípios da economia solidária. O modelo de operação do primeiro e maior banco comunitário do país, vem sendo replicado em todas as regiões do Brasil. Em rede, os bancos comunitários dinamizam economicamente os territórios onde estão inseridos, estimulam e financiam a produção e o consumo locais, inserem mecanismos de finanças sociais (moedas sociais, bancos comunitários), estimulam a inovação em produtos e promove o protagonismo comunitário. Clique Aqui para assistir ao documentário sobre a história do Banco Palmas.
  • Grupo Raízes: Coletivo formado por 25 agricultores e agricultoras familiares da comunidade de Riachão da Areia e imediações, município de Taperoá-BA, que redescobriam seus dons com o artesanato e manualidades, e vem gerando uma micorrevolução local ao confeccionarem peças artesanais (cestaria, esteiras de taboa, aros de cipó, mandalas e filtros dos sonhos) que resgatam saberes, valorizam o meio ambiente, incrementam a renda e geram impacto social. Dinamizado por Isabelly Assunção, Empreendedora Social e Artesã, o coletivo tornou-se conhecido em todo o Baixo Sul da Bahia, possui duas bases de comercialização: uma na Barra Grande, Península de Maraú, e outra em Franca-SP, e paralelamente ao o Brasil..
  • SISCOOB: O Sistema de Cooperativas de Crédito é o maior sistema financeiro cooperativo do Brasil com mais de 5 milhões de cooperados, 3,4 mil pontos de atendimento, distribuídos 307 municípios em todo país. O SISCOOB conta com um portfólio completo de produtos e serviços financeiros – como conta corrente, investimentos, crédito, cartões, previdência, consórcio, seguros, cobrança e muito mais –, com preços bem mais justos que os encontrados no mercado financeiro convencional. 

As experiências supracitadas são indicativos de que a Economia Solidária se consolida cada vez mais como uma economia possível, justa, viável e transformadora foram trazidos para oferecer aos leitores novas lentes para análise da realidade.

Com efeito, importa afirmar que a Economia Solidária se constitui como uma importante via para reeducação das relações de consumo. Consumir é um ato político, e diz muito sobre as nossas escolhas. Sobre o Consumo Solidário, é oportuno citar Singer (2002) quando nos diz que:

O consumo solidário poderá ser um fator de sustentação de algumas empresas solidárias (…). Mas a economia solidária só se tronará uma alternativa superior ao capitalismo quando ela puder oferecer a parcelas crescentes de toda a população oportunidades concretas de autossustento, usufruindo o mesmo bem-estar médio que o emprego assalariado proporciona. Em outras palavras, para que a economia solidária se transforme de paliativo dos males do capitalismo em competidor do mesmo, ela terá de alcançar níveis de eficiência na produção e distribuição de mercadorias comparáveis aos da economia capitalista e de outros modos de produção, mediante o apoio de serviços financeiros e científicos tecnológico solidários.

(Singer, 2002, p.120-121)

A criticidade e a capacidade de relativização são fundamentais para conter as tentativas de desqualificação das relações sociais de reciprocidade estabelecidas pelos Empreendimentos Econômicos Solidários, alegando que estas precarizam as relações econômicas de trabalho, de exercício profissional, como se os mecanismos de mercado fossem vias exclusivas para firmamentos de laços e conexões humanas.

Apesar de tanto avanço, notadamente, muitos Empreendimentos Econômicos Solidários precisam superar inúmeros gargalos para ampliarem suas escalas de produção e capacidades de atendimento.  Kraychete e Carvalho (2012, p. 23) afirmaram faltar a estes “condições mínimas das quais usufruem as empresas capitalistas: condições apropriadas de financiamento, pesquisa, formação e qualificação dos trabalhadores, infraestrutura, segurança, vias de acesso etc.”

Uma aproximação com os ecossistemas de negócios de impacto e de inovação social tendem a: (i) acelerar os ciclos de desenvolvimento de produtos; (ii) ampliar a produtividade e ganhos em escala, de modo que resulte no aprimoramento da prospecção de novos mercados consumidores; (iii) desmistificar a ideia de que os produtos da Economia Solidária são caros, ou que possuem a qualidade inferior; (iv) construir uma reputação positiva em torno dos produtos; (v) estruturar canais de comercialização, e, com rigor, (vi) fomentar o cumprimento dos requisitos legais, fiscais e sanitários.

Por estimular a produção, o consumo e a valorização de riquezas com foco no ser humano, uma proposta de Emenda Constitucional (PEC69/2019) foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a inclusão da economia solidária entre os princípios da Ordem Econômica Nacional. Essa inserção será um marco que reforçará a regulação e novas institucionalidades, sobretudo, no campo das políticas públicas.

Um ganho sem precedentes para o campo, será a adesão de um maior número de pessoas aos produtos e serviços oriundos dos Empreendimentos Econômicos Solidários que conseguem materializar no presente (inclusão socioprodutiva, empoderamento comunitário, equidade racial e de gênero, comércio justo, novas finanças), a utópica mudança projetada na pouco provável, a curto e médio prazo, reestruturação do capital. A mudança de paradigma depende de cada um nós! Contribua com a ativação dos ecossistemas locais. Mude progressivamente as suas relações de consumo. Transforme mundos, positivamente é claro!

PARA SABER MAIS:

  • DOWBOR, L. A era do capital improdutivo: Por que oito famílias têm mais riqueza do que a metade da população do mundo?. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
  • FRANÇA-FILHO, G.C. Economia Solidária. In: BOULLOSA, R.F (org). Dicionário para formação em gestão social. Salvador: CIAGS/UFBA, 2014. P.54-56.
  • FRANÇA-FILHO, G.C. EYNAUD, P. Solidariedade e Organizações: pensar uma outra gestão. Salvador: EDUFBA: Ateliê Humanidades, 2020.
  • KRAYCHETE, G. CARVALHO, P. Economia Popular Solidária: indicadores para a sustentabilidade. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2012.
  • MASCARENHAS, T. S. GONÇALVES, J. R. Consumo Responsável em ação: tecendo relações solidárias entre o campo e a cidade. São Paulo: Instituto Kairós, 2017
  • SILVA, S.P. (org). Dinâmicas da economia solidária no Brasil: organizações econômicas, representações sociais e políticas públicas. Brasília: INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA, 2020.
  • SILVA, S.P. CARNEIRO, L.M. Os novos dados do mapeamento de Economia Solidária no Brasil: nota metodológica e análise das dimensões socioestruturais dos empreendimentos. Brasília: INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA, 2016.
  • SINGER, P. Introdução a Economia Solidária. 1ª ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.

[1] A base de dados do Sistema de Informações da Economia Solidária, está desatualizada e o último mapeamento de indicadores foi realizado em 2013 e o grande volume de dados estão dispersos, fragmentados, dificultando a percepção dos seus impactos efetivos.

Foto: 2ª edição do Festival de Economia Solidária/Fabricio Cruz

Fabricio Cruz é baiano com muito orgulho! Profissional do Desenvolvimento. Diretor da Atairu – Gestão e Inovação Social. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social (EAUFBA/PDGS). Especialista em Gestão de Projetos (ESALQ/USP) e em Inovação, Sustentabilidade e Gestão de Organizações da Sociedade Civil e do Terceiro Setor (UNIJORGE). Autor do livro “O futuro chegou! E agora? Avaliação participativa conectando percepções do impacto das tecnologias nas políticas públicas educacionais”.

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