Sustentabilidade

Recifenses se reúnem para debater soluções para a crise climática e arrecadar doações para o Rio Grande do Sul

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A situação de calamidade que vem ocorrendo nas últimas semanas no estado do Rio Grande do Sul (RS), mobilizou um grupo de pessoas da cidade de Recife (PE) preocupadas com a crise climática e com a situação dos desabrigados pelas chuvas.

“É importante viver a experiência da nossa própria circulação do mundo, não como metáfora, mas como fricção, poder contar uns com os outros.”
AILTON KRENAK, IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO.

As chuvas iniciadas no estado gaúcho no dia 26 de abril, elevou drasticamente o nível do Guaíba, lago que passa pela cidade de Porto Alegre, que ultrapassou os muros de contenção e invadiu bairros da cidade. Até o momento são aproximadamente 49 mil pessoas em abrigos, 582 mil desalojados, 53 desaparecidos, 169 vítimas fatais e aproximadamente 2,3 milhões de pessoas afetadas, representando 94% da região em situação de calamidade pública, segundo a Defesa Civil do RS.

Por ser uma cidade construída sobre o aterramento de mananciais, além de ser rodeada de rios, a crise climática é uma grande preocupação para a população da cidade de Recife (PE). Todos os anos, as chuvas já prejudicam a vida de milhares de pessoas, especialmente aquelas que vivem em situação de vulnerabilidade. Se medidas não forem tomadas para enfrentar as mudanças climáticas, eventos extremos, como o que assolou o sul do país, podem se repetir em vários locais com maior frequência.

Diante disto, Jéssica Lobo, diretora-executiva da organização ‘Fale ao Vento’, que atua com projetos em economia criativa e economia circular, idealizou o encontro reuniu diferentes agentes da sociedade civil para um diálogo em busca de soluções colaborativas para gestão da crise climática que vem assolando o nosso país. Além de incentivar os participantes a trazerem doações para os desabrigados gaúchos. Foram arrecadados durante o evento alimentos, roupas e materiais de higiene básica, que foram destinados aos pontos de coleta em apoio as vítimas.

Jéssica Lobo, idealizadora do encontro, diretora-executiva da organização ‘Fale ao Vento’ (Foto: Roberto Jaffier)

O tema do encontro “Ideias para adiar o fim do mundo – Como superar a crise climática e reimaginar futuros saudáveis”, foi inspirado na obra de mesmo nome do indígena e filósofo Ailton Krenak, que possui uma perspectiva de tratar natureza e humanidade como parte um do outro, diferente da forma como o modelo econômico atual tem sido regido, separando as pessoas da natureza, e as colocando apenas como usurpadoras de seus recursos, sem levar em consideração a interdependência dessa relação. Tema pertinente diante das consequências ambientais desencadeadas principalmente pela má gestão do meio ambiente. 

Jeferson Moura, estudante de Etnobiologia na UFRPE, esteve presente no encontro, e salientou a importância de lermos obras escritas por quem vive e conhece de perto as construções sociais e ambientais de nosso país, “Precisamos resgatar autores brasileiros, pois os demais não vivem o que a gente vive”, afirmou.

Jéssica Lobo apresentando o livro de Ailton Krenak que serviu de inspiração para o tema do encontro (Foto: Roberto Jaffier)

A roda de conversa foi realizada no dia 18 de maio, na biblioteca pública de Pernambuco, no centro do Recife. Estiveram presentes em torno de 30 pessoas, sendo eles: políticos, pesquisadores, professores, empreendedores, artistas, representantes de instituições sociais e ambientais, e universitários de diferentes áreas como: biologia, engenharias, oceanografia, design, turismo, jornalismo e demais pessoas da sociedade civil.

As principais organizações que apoiaram a realização deste encontro, foram: o Impacta Nordeste, Instituto Toró, Greenpeace Recife, Grupo de Extensão Tapioca (UFPE/UFRPE), ONG Saluz, Floriterárias e Carvalho Studio de Dança. A Globo Nordeste também esteve presente e promoveu a cobertura do evento para o programa NE2.

Durante o encontro, foi citado a estrutura da cidade de Recife, regida pela dicotomia social, no qual enchentes como as que ocorrem no Sul do país, acontece de maneira similar em vários pontos da cidade. A pedagoga Anita Presbitero, idealizadora do coletivo Floriterárias, citou o caso de um evento climático que desabrigou famílias de alunos da escola em que leciona, no bairro de Santo Amaro, levando-os a morar dentro da instituição de ensino durante alguns meses.

Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC, Recife é a 16ª cidade mais vulnerável do mundo às mudanças climáticas, possuindo apenas uma média de 4 metros acima do nível do mar (dados da Prefeitura do Recife), com alguns trechos da planície chegando a ser abaixo do nível do mar, e é considerada por estudiosos a cidade mais baixa do Brasil. Além disso, é cercada de rios e sua construção se deu a partir do aterramento de manguezais, características que facilitam as enchentes na cidade.

“Entender a estrutura de como a cidade foi construída, também é uma forma de entender melhor como de fato as mudanças climáticas irão afetar a cidade”, afirmou o engenheiro de pesca e mestre em oceanografia Assis Larcerda, também presente do encontro. A situação da cidade é agravada pelo adensamento populacional, má distribuição de áreas verdes, habitações em condições precárias e a falta de saneamento básico.

Foto: Roberto Jaffier

Também foi comentado por alguns participantes, o quanto o interesse econômico tem sobreposto o desenvolvimento sustentável, no qual não existe uma preocupação real no uso adequado dos recursos, mas apenas exploratório, caso que reflete também as ações dos governantes, como foi o caso do prefeito de Porto Alegre que possuía interesse em derrubar os muros do Cais da Mauá, para privatização da orla porto-alegrense, muro este, que serve de contenção das cheias do lago Guaíba, e que se este projeto estivesse ocorrido, a situação da cidade hoje poderia estar ainda pior. 

Outro caso recente, foi a fala do vereador de Caxias do Sul (RS), propondo a derrubada de árvores com o intuito de evitar deslizamentos, fala irresponsável, já que estudiosos já comprovaram que a retirada de árvores contribui ainda mais para que os deslizamentos ocorram. 

Gabriel Melo, biólogo e voluntário do Greenpeace Recife, apontou também o afrouxamento da legislação no atual governo do RS, no qual, segundo dados mais recentes levantados pela Mapbiomas (2022), houve um desmatamento de 5.197 hectares de vegetação, equivalente a 7.200 campos de futebol, o que também viabilizou as enchentes no estado.

“Aqui em Recife temos a APA Aldeia-Beberibe com 31.634 hectares de vegetação, e estão querendo fazer o mesmo aqui”, Salienta Gabriel. A Área de Proteção Ambiental (APA) Aldeia – Beberibe, importante Unidade de Conservação (UC) de Uso Sustentável de Pernambuco, está sendo ameaçada por um projeto em tramitação no governo estadual, que visa o desmatamento de parte da área, para a construção de uma nova Escola de Formação e Graduação de Sargentos de Carreira do Exército. Especialistas apontam que a construção agravará ainda mais as catástrofes climáticas no estado, já que compreende a maior reserva de Mata Atlântica que restou em Pernambuco e serve de abrigo para uma vasta biodiversidade de fauna e flora, contribuindo para absorção de grande quantidade de carbono da atmosfera, além de importantes nascentes que abastecem várias cidades do estado.

O negacionismo climático é uma das causas que vem potencializando catástrofes ambientais em nosso país, como foi o caso desta que ocorreu no Rio Grande do Sul. Diante desses fatos, um dos pontos enfatizados por vários dos participantes presentes no diálogo, foi justamente evitar o voto em candidatos políticos que possam contribuir ainda mais com a crise climática ao invés de promover ações mitigatórias, ponto muito pertinente, já que este ano ocorrerão as eleições municipais que irão eleger os cargos de prefeito, vice-prefeito e vereadores por todo o país.

Foto: Roberto Jaffier

Também foi citado o quanto pautas como o ESG (sigla para: Ambiental, Social e Governança) estão cada vez mais presentes nas organizações de todo o país. Os participantes alertaram que, embora o ESG esteja em alta em várias empresas, algumas apresentam uma falsa imagem de que estão sendo implementadas ações sustentáveis em sua gestão, mas de fato não estão, o que é chamado de “greenwashing” (ou “maquiagem verde”, em tradução livre).

“A legislação climática e proteção de áreas verdes do Recife é bem estruturada no papel, mas não possui boa fiscalização.”

Rani Vital, Instituto Toró

Rani Vital, do Instituto Toró, salientou o quanto a falta de fiscalização das práticas socioambientais, tem estagnado avanços nessa área: “A legislação climática e proteção de áreas verdes do Recife é bem estruturada no papel, mas não possui boa fiscalização”, afirmou.

A mesma também citou o Plano de Ação Climática do Recife (2020) e o Plano de Descarbonização de Pernambuco (PDPE – 2022), que possuem estratégias que podem servir de base para tomada de ações. O primeiro documento apresenta metas divididas em quatro setores principais: energia, saneamento, mobilidade e resiliência, e o segundo, são estratégias para diminuição das emissões de gases de efeito estufa na cidade.

Outro material que possui várias informações de como devemos agir é o relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), citado pela participante da roda de conversa, Anne Justino, doutora e especialista em ciências do mar, extensionista do Laboratório Tapioca (UFPE/UFRPE). “Muita coisa é realizada na ciência, mas existe pouca divulgação. As pessoas que possuem a oportunidade de obter maior conhecimento acerca desses temas tem a obrigação de passar o conhecimento para aqueles que não tem acesso à informação”, salientou Anne.

Além disso, foi enfatizado a importância de as mudanças ocorrerem em todas as esferas da sociedade, tanto de ordem governamental, empresarial como pela sociedade em geral. “Já existe muito material significativo sobre a temática, agora é trazer para a prática! Precisamos organizar nossas bases e apresentar ações. Todos devem agir tanto individualmente, como coletivamente, constantemente! Precisamos aprender a pensar politicamente!”, destacou Anne.

Também foi citada a importância de pressionarmos os governantes para a criação de políticas públicas eficazes para evitar novas catástrofes. Além da criação de uma agenda pública de desenvolvimento econômico que leve em consideração a preservação dos recursos, o cumprimento desta agenda precisa ser acompanhado pela população. 

Foto: Roberto Jaffier

A questão da sustentabilidade envolve diferentes áreas da sociedade e é necessário que medidas ocorram em diversas frentes. Outras vertentes que merecem destaque citadas pelos participantes foram: a melhoria do ensino básico, incluindo pautas socioambientais nas escolas; a agroecologia como possível solução para a monocultura; a preservação das abelhas, por executarem serviços ambientais de suma importância para a sociedade; a prática da compostagem para diminuição de geração de lixo orgânico, um dos resíduos mais impactantes e que contribui para a poluição e liberação de gases de efeito estufa; a revitalização das margens de rios; e o controle de projetos de leis que buscam destruir ainda mais a biodiversidade, como o exemplo do que está ocorrendo na APA Aldeia – Beberibe, e outros projetos que buscam a privatização de nossas praias.

Além de medidas coletivas, foram citadas mudanças individuais, como: cada um gerir melhor seus próprios resíduos, destinando os materiais recicláveis para coleta seletiva e os resíduos orgânicos para compostagem; substituir o uso de materiais poluentes e de difícil reciclagem por materiais menos agressivos para o meio ambiente; e realizar o consumo consciente, evitando o desperdício e a compra desenfreada, buscando consumir de empresas responsáveis e locais, já que a cadeia de transporte de produtos também é uma das responsáveis por liberar extensivos gases poluentes para a atmosfera.

Daniele Gomes citou a importância de colocar em prática essas mudanças ao sair da roda de conversa e realizar algo em nossas residências, na rua que moramos, bairros ou comunidades, por mais simples que seja. Pensando nisso, ela concluiu que mesmo não atuando na área ambiental, viu a necessidade no nicho em que trabalha em fazer algo a respeito dos resíduos têxteis. Ela criou uma startup chamada ‘Brinquedo Manguetown’, salientando que pequenas ações podem trazer vários impactos positivos para o entorno.

“Existem inúmeras alternativas! Que possamos sair daqui, e mudar a realidade!”

Gabriel Melo, biólogo e ativista Greenpeace

Os participantes também citaram a importância de que haja outros encontros a partir desse, e ações sejam desenvolvidas. Jéssica, idealizadora do evento, declarou que haverá outros encontros para que possam ser debatidas ações práticas a partir do que foi levantado.

O enfrentamento a mudança climática não é uma questão restrita apenas a quem atua na área ambiental. A abordagem precisa se tornar cada vez mais popularizada. Todos os setores e atores da sociedade devem se mobilizar em prol da causa para que uma mudança em nossas cidades possa ocorrer de fato. Encontros como este devem acontecer também em outras cidades. Como afirmou Jéssica, “não tem mais como não tomar partido do que está rolando no mundo”, a mudança precisa acontecer agora!

Conheça mais sobre as instituições envolvidas: 

https://faleaovento.com
https://tapioca.ird.fr
https://www.instagram.com/toroinstituto
https://www.instagram.com/floriterarias
https://www.greenpeace.org/brasil/ 
https://www.instagram.com/gpbr.recife/
https://www.instagram.com/carvalhostudio7/ 
https://www.instagram.com/ongsaluz/