De uma infância difícil ao cargo de designer estratégica em Inovação Social na Natura, Mel Campos rompeu as barreiras impostas a milhões de jovens periféricos no Brasil com o sonho de transformar lugares e pessoas. Nessa entrevista ela nos conta sobre sua trajetória profissional e como é trabalhar na área de design associado a inovação social e como essa visão é importante para gerar impacto positivo na sociedade
Por Ana Paula Silva
Edição: Marcello Santo
“Eu me percebo como uma pessoa inovadora e criativa porque precisei criar e inovar minha própria realidade”. Com essa fala a baiana e designer, Mel Campos, nos dá uma ideia da trajetória que seguiu para vencer várias adversidades até conquistar um espaço profissional em uma grande empresa. Tudo isso graças aos estudos, seu posicionamento nas redes sociais e sua atuação junto ao ecossistema dos negócios de impacto na Bahia.
Mãe de Madu e avó de Tauí, Mel ama um vinho, sozinha e com as amizades. Sua religião: o amor. Desde de criança sempre quis fazer muitas coisas, trabalhar em muitas profissões e que queria ser e viver tudo. “Me lembro que com 14 anos eu já tinha uma definição clara de como eu queria trabalhar e tinha que ser com algo que eu pudesse transformar pessoas e espaços por onde eu passasse, onde meu potencial de aprendizado fosse transmitido para outras pessoas. Que eu pudesse reverberar na transformação positiva”.

Mel entrou na universidade por meio do Enem e do Prouni, onde cursou Design Gráfico, Design e Comunicação Visual e uma extensão em educação. Iniciou sua trajetória profissional dando aulas no Senai e continuou se engajando em diversas atividades. Foi ganhadora do Hackathon Desafios Bahia na Campus Party, e como prêmio cursou o MBA em Inovação e Empreendedorismo onde criou novas conexões. Também foi premiada em primeiro lugar na Startup Wekeend Salvador.
Em seguida, foi trabalhar na incubadora pública de negócios sociais IN PACTO, onde mentorou e promoveu diversos eventos no ecossistema de negócios de impacto, até ser convidada para atuar numa empresa que ela tinha como referência e citava como case de sucesso quando falava de inovação e responsabilidade social.
Hoje, Mel é designer estratégica em Inovação Social na área de Business Innovation na Natura, e também é diretora da ADG – Brasil (Associação de Designers Gráficos do Brasil). Conversamos com Mel sobre a sua trajetória e como é trabalhar com inovação aliada ao impacto social em uma das maiores empresas do mundo.
Impacta Nordeste – Conte um pouco da sua trajetória profissional.
Mel Campos – Minha trajetória profissional não é nada linear, pois vim de uma realidade inóspita de pobreza e de estrutura familiar. Eu e minha mãe moramos no orfanato quando eu nasci e com 9 anos eu voltei para o orfanato, porque minha mãe não tinha com quem me deixar, não tinha uma rede de apoio. Isso fez com que eu me desenvolvesse de uma forma diferente, numa perspectiva de sobrevivência. Eu acredito que isso foi formando o ser que eu sou hoje. Eu me percebo uma pessoa inovadora e criativa porque precisei criar e inovar minha própria realidade junto com a pessoa incrível que é a minha mãe. Gosto de falar disso porque ninguém é apenas um currículo. Ninguém é apenas o certificado após a conclusão de um curso técnico ou de uma graduação. A perspectiva da história profissional de alguém passa por toda a estrutura que vem antes disso. O que é fácil e o que foi difícil faz o profissional existir.
Quando eu percebi que tinha uma boa habilidade em ensinar as pessoas, decidi que queria trabalhar com profissões que tivessem essa pegada e que levassem a felicidade para as pessoas. Por isso eu fui aproveitando as oportunidades que estavam na minha frente ou fui buscando. Eu gosto muito de contar de onde eu vim para marcar que cada um faz parte de um lugar e esse é o meu. Com a política pública do ProUni e do Enem, entrei na faculdade de design. Escolhi design porque pesquisei muito sobre o curso e vi que se assemelhava ao que eu queria de transformação e que não seria uma profissão em que se faz a mesma coisa todos os dias.
“Ninguém é apenas o certificado após a conclusão de um curso técnico ou de uma graduação. A perspectiva da história profissional de alguém passa por toda a estrutura que vem antes disso.”
No decorrer da faculdade, com 19 anos, me tornei mãe. Então, além das dificuldades em relação às habilidades que precisava adquirir para continuar o curso, ainda tinha essa estrutura de maternar, precisar de toda a estrutura de apoio, trabalhar e fazer faculdade. Mas segui na faculdade de design e, concomitantemente, fiz uma extensão em educação e passei a dar aulas no Senai no curso de Comunicação Visual. Fiquei lá por 10 anos.
Daí veio um momento que foi um marco na transição do design gráfico para a inovação. Eu sempre quis muito participar da Campus Party, mas era uma perspectiva muito longe. Não tinha dinheiro, nem tempo. Quando o evento veio para Bahia, em 2017, comprei o ingresso e mesmo sem ficar acampada, participei do Prêmio do Hackathon do Governo da Bahia, que foi o maior hackathon que aconteceu naquela edição da Campus Party. Minha equipe foi vencedora com uma ferramenta que criava um match entre jovens de 16 a 25 anos que precisavam de emprego e empresas que procuravam aqueles perfis junto ao Sine da Bahia. Nossa equipe ganhou um MBA em Inovação e Empreendedorismo, no Senai/CIMATEC, e a partir daí eu comecei a criar novas conexões, novas percepções para o design.
Comecei a trabalhar numa incubadora de negócios sociais pública de Salvador, a IN PACTO e fui ampliando horizontes. Ganhei o Startup Wekeend Salvador e isso também me aproximou mais do ecossistema. Comecei a mentorar e promover eventos de inovação junto ao ecossistema de negócios de impacto daqui.
IN – Como chegou a ocupar seu cargo atual na Natura?
MC – Foi nesse período que eu estava na IN PACTO que fui convidada a trabalhar na Natura. Eu já estava com uma atuação muito grande dentro do sistema de inovação. Durante a pandemia participei de muitas lives e capacitações online para conseguir promover e apoiar ainda mais os empreendedores de impacto. Nesse período promovemos várias ações que mitigassem os problemas socioeconômicos que a pandemia trazia. E enquanto eu estava um dia vivendo a vida virtual e me dedicando a tudo isso, recebi uma mensagem no Instagram de uma pessoa da Natura falando que queria conversar comigo. Era a Lucilene Oliveira, coordenadora do Laboratório de Protótipos na Área Lab de Dados & Insights da empresa na época, que disse que estava me acompanhando nas redes e queria bater um papo, pois tinha uma oportunidade para mim e queria muito que eu trabalhasse no time dela.

A princípio, eu fiquei bem desconfiada porque a Natura sempre foi uma referência para mim tanto em termos de impacto como em vários outros sentidos. A Natura sempre foi o case nas minhas palestras, nas minhas capacitações, das minhas aulas e até então parecia um lugar distante pra mim. Nesse momento que ela me chamou eu já estava pensando em possibilidades de expansão do mercado que eu atuava. Eu trabalhava na IN PACTO como subcoordenadora e a vaga seria para analista sênior. Aceitar poderia parecer que eu estava dando um passo para trás na carreira, mas eu não percebi desse jeito. Entendi que era uma grande oportunidade de atuar num ecossistema muito maior.
No início eu trabalhava focada na área de relacionamento, numa equipe que estruturava as pesquisas e análises e apoiava as outras áreas em seus projetos para melhorar a vida das consultoras e apoiá-las na sua jornada. Foi muito importante trabalhar nessa área, pois pude desenvolver mais habilidades como análise mais profundas de dados, processos de percepção de negócios maiores e isso foi ampliando as possibilidades de atuação lá dentro em várias áreas da Natura.
IN – Como designer em Inovação Social na Natura, qual é a sua missão na empresa? Quais são os principais desafios?
MC – Com uma transição interna de reestruturação de cadeiras e áreas, atualmente estou atuando na área de Business Inovation como designer estratégica. Nessa área de inovação atuamos no Brasil e toda a América Latina com um olhar estratégico para o negócio, mas sempre pensando em como podemos entregar valor para os nossos vários segmentos de clientes, além da percepção digital de como podemos melhorar nossos produtos e serviços nesse sentido.
Como designer de inovação social, eu acho importante, e esse é o caso da Natura, que as empresas tenham como um dos pilares esse olhar de impacto e inovação social dentro dos projetos, dentro da sua estrutura. Para mim é muito importante estar numa área de negócio em que a gente pense no lucro de serviços e produtos, afinal estamos falando de capitalismo, mas que olhe para como as pessoas vão utilizar aquele produto, serviço ou ferramenta. Que analise como será a experiência do usuário tanto para pessoas digitalizadas e não digitalizadas. Como será o acesso dela e como aquilo vai melhorar a vida dessa pessoa? Mesmo sendo um projeto comercial de uma estrutura de negócio, estar dentro dessa área atuando com um olhar social para mim é como eu acredito que as empresas deveriam ser. A Natura tem uma área social muito grande, com pessoas bem capacitadas, com especializações em educação social nas diversas áreas da empresa.
“Para mim é muito importante estar numa área de negócio em que a gente pense no lucro de serviços e produtos, afinal estamos falando de capitalismo, mas que olhe para como as pessoas vão utilizar aquele produto, serviço ou ferramenta.”
O maior desafio hoje é o de quase toda empresa que é muito grande. É ter projetos que se integrem. É conseguir numa empresa de atuação tão exponencial, como a Natura, integrar projetos correlatos para que cheguem redondos para a consultora e para o cliente final. Eu acho que estamos no caminho. Outro desafio é ser uma mulher em uma área comercial. Embora tenhamos muitas no setor e de termos colegas muito antenados para as mudanças, é uma área majoritariamente dos homens. Todas nós temos que nos superar a cada dia e buscar inspirações para crescer dentro dessa estrutura. Mas sou muito feliz e aprendo muito todos os dias e sei que compartilho muito do meu aprendizado nesse espaço.
IN – A Natura foi uma das primeiras empresas brasileiras a trazer a inovação social para o seu core business. Como a inovação é vista e aplicada dentro da empresa? E como é direcionada para questões sociais?
MC – Eu acho que é muito importante ter a perspectiva social no pilar da empresa e que essa visão esteja nos valores do negócio. Esse é um valor do fundador da Natura. Mesmo quando abriu capital e virou uma empresa com ações na bolsa, esse pilar se manteve e é essencial para todos os colaboradores. Quando entramos para a empresa e é mostrado como isso é importante, como é estar num ambiente interno de trabalho saudável e agradável, isso reverbera no ambiente externo também. A Natura tem ações internas de integração, de entendimento dos nossos impactos sociais, ambientais e econômicos. Quando as pessoas que trabalham nesse lugar também tem esses valores é mais fácil.
IN – Em um mundo em que cada vez mais os consumidores demandam que as empresas efetivamente cumpram suas responsabilidades sociais e ambientais, como fazer para estar sempre à frente nessa temática? O que a empresa faz para ser atuante nesse setor?
MC – Eu acho que para estar sempre à frente contratamos muitos serviços de pesquisa, buscando sempre ideias que estejam dentro desse pilar. Quando eu era criança, sonhava com a pessoa que eu queria ser quando fosse adulta e os ambientes em que queria estar. A Natura é muito deste lugar. Hoje eu estou num lugar que tem uma perspectiva de futuro, uma estruturação de um mundo melhor, que se posiciona socialmente e politicamente e isso para mim faz muito sentido e tem a ver com meus valores pessoais.
IN – Como o design se relaciona com a inovação social?
MC – Quando eu estava no início da graduação em design gráfico ainda não entendia como o design poderia ter algo a ver com inovação social. Hoje entendo que o design se relaciona com a inovação social porque temos responsabilidade em como os produtos que projetamos e a comunicação que utilizamos irão atingir as pessoas.

Acredito que temos um impacto negativo também, inclusive na sociedade, porque criamos o desejo pelo consumo, na criação de produtos e espaços altamente tecnológicos. Então produzimos muito lixo, muito consumo e por isso o design tem que pensar em quais são esses impactos. Como mitigar os negativos e potencializar os positivos? Por isso acho que o design tem muito a ver com a inovação social.
“O design se relaciona com a inovação social porque temos responsabilidade em como os produtos que projetamos e a comunicação que utilizamos irão atingir as pessoas.”
A inovação social aliada ao design vai desde a produção de uma identidade visual, da embalagem que eu produzo e como meu usuário vai utilizá-la, como ele lerá meu cartaz e o que ele está comunicando. É preciso pensar como tudo isso vai impactar a sociedade e o planeta. Mas mais uma vez digo, para entender essa ideia é preciso que ela esteja dentro do seu valor pessoal. Pensar no impacto para a sociedade não pode ser um flow, ou seja, navegar no tema porque está na moda ou porque todo mundo tá falando disso. Quando essa forma de pensar está dentro do valor individual e da empresa em que você trabalha fica mais fácil de inovar gerando impacto positivo.
IN – Como inovar gerando impacto positivo na sociedade?
MC- Eu acho que a inovação só é boa quando pensamos no impacto positivo que isso vai causar. Inovar porque criamos uma tecnologia ou um produto novo sem pensar na real necessidade das pessoas, se aquilo realmente é um problema e estamos resolvendo uma necessidade e se aquilo vai apoiar uma nova estruturação de sociedade, não faz mais sentido.
“Inovar porque criamos uma tecnologia ou um produto novo sem pensar na real necessidade das pessoas, se aquilo realmente é um problema e estamos resolvendo uma necessidade e se aquilo vai apoiar uma nova estruturação de sociedade, não faz mais sentido.”
Já fizemos isso e hoje o planeta está como está e as pessoas estão como estão, assoberbadas de informação, de consumo e de lixo. Agora precisamos inovar gerando impacto positivo sempre e para isso precisamos ter um olhar para os dados e entender como eles nos apoiam nesse processo. Acho que toda vez que pensarmos em um projeto devemos aplicar esse pensamento – e se ele não existisse? Se ele não existisse como seria a vida das pessoas? Continuaria igual ou seria melhor? E se ele existir? O que pode ser feito para o futuro? Eu gosto de pensar qual tipo de melhoria vamos trazer para que lancemos algo melhor.
Para isso temos que fazer muita pesquisa, perguntar para as pessoas, olhar para as pessoas. Precisamos lembrar em todo e qualquer projeto de inovação que somos pessoas que estão colaborativamente criando para outras pessoas. Então tudo que fazemos é pensando em quem vai usar. Não podemos perder essa perspectiva humanizada quando estamos criando. Porque robotizamos muitas coisas, mas até quando criamos um robô é para melhorar a vida das pessoas. Se não perdermos a perspectiva de humanidade, sempre vamos inovar gerando impacto positivo.