A gestão de conhecimento contribui para consolidação de produtos, reforçam a cultura e a memória organizacional, melhorando os resultados, articulando aprendizados e corroborando com a construção proativa do futuro.
A prática de sistematização de experiências tem conquistado cada vez mais espaço nas agendas dos gestores públicos, privados e sociais. Seu desenho e aplicação contribuem para consolidação de produtos de conhecimento que reforçam a cultura e a memória organizacional, melhoram resultados, articulam aprendizados e corroboram com a construção proativa do futuro.
Em 2022, ano que completo 20 anos de carreira, refletindo sobre a minha trajetória, identifiquei que destes, pelo menos 10, tenho dedicado tempo e experiência nesse tipo de prática em diferentes âmbitos de gestão. Nessa caminhada tive a oportunidade de sistematizar diferentes tipos de iniciativas com variados tamanhos e níveis de complexidade, tais quais: eventos, projetos socioambientais, políticas públicas, tecnologias de gestão social, programas de responsabilidade social, programas educacionais.
Foi em mediando e/ou coproduzindo as sistematizações dessas experiências que fui construindo minha identidade profissional e formatando o meu propósito pessoal, que atualmente incorpora a missão da Atairu – Gestão e Inovação Social: “Encorajar organizações a consolidar um legado positivo, inovador, inspirador e sustentável.
Nesse artigo, partilharei alguns aprendizados, reflexões e alguns referenciais que podem ser uteis a gestores públicos, sociais e privados para definição de estratégias, seleção de técnicas que permitam fortalecer e experimentar mecanismos de captura, registro e disseminação das aprendizagens e dos legados organizacionais.
Importa salientar que sistematização é um campo que quanto mais se fala, se escreve, mais se requer abordagens contextualizadas para as diversificadas demandas que se apresentam no cotidiano dos Gestores e das iniciativas (projetos, programas ou políticas). Na condução desse tipo de trabalho, os processos, os efeitos e os impactos das experiências devem ser percebidos de maneira sistêmica, e para que tenham significado completo é preciso aderência e engajamento pelos diferentes atores.
De acordo com Milani (2005, p. 11) sistematizar é “construir a memória de uma experiência de desenvolvimento local”, divulgar saberes relacionados às práticas, estimular o intercâmbio e a confrontação de ideias, reconstituir visões integradas dos processos de intervenção social. Em complemento, convém citar Holliday (1996, p. 42), que afirma que a sistematização relaciona os “processos imediatos com os seus contextos, confronta o fazer prático com os pressupostos teóricos que o inspiram”.
Comungo do ideário de que alguns produtos de conhecimento, a exemplo das sistematizações, servem para reforçar combinados, significados, construções, conexões, motivo pelo qual destaco as palavras de Milani (2005, p.12) ao realçar que a sistematização dá ênfase aos processos de difícil mensuração e revela conhecimentos, deixa raízes, transforma histórias de vida, interfere em processos sociais.
Práticas de sistematização já eram bastante comuns nos movimentos populares de educação no Brasil desde 1960, estas, porém, foram bastante influenciadas pelos referenciais teórico-metodológicos postulados por Oscar Jara Holliday¹ (1996;2006) nas décadas posteriores. Para Holliday, a sistematização consiste em um processo de objetivação do vivido e seus produtos devem gerar um processo de comunicação viva e retroalimentadora. Dentre as utilidades da sistematização citadas por este autor, destacam-se: (1) compreensão mais profunda das experiências, com a finalidade de melhorar a própria prática, (2) compartilhamento de ensinamentos e (3) condução à reflexão teórica os conhecimentos surgidos nas práticas sociais concretas.
Sistematizar uma experiência não é uma tarefa simples, pois em algum momento a complexidade se fará presente no processo. Seu resultado decorre de um exercício de coprodução que exige a combinação de esforços de múltiplos atores, a mediação de processos dialógicos e participativos associado a um trabalho intelectual que fornece bases para conectar dados de uma experiência concreta e possibilidades de teorização.
É fundamental destacar que embora seja um importante produto de conhecimento, a sistematização em si não configura Gestão do Conhecimento (esta é mais ampla, abrange processos articulados, orientados aos objetivos do negócio, com uma governança estruturada e indicadores bem definidos).
Para sistematizar uma experiência é fundamental organizar, categorizar, analisar, sintetizar, refletir sobre dados e informações; mapear saberes, elaborar, mobilizar e disseminar conhecimentos, aprendizagens, lições. Cada verbo citado carrega em si um conjunto técnicas e ações. Para exemplificar um possível caminho de aplicação, compartilho a seguir um desenho metodológico proposto por Holliday (1996; 2006):
Holliday (1996) alerta que nem tudo pode ser considerado uma sistematização, por isso aponta algumas práticas que, de modo equivocado, são propagadas como sinônimo, a exemplo: (1) uma narração de uma experiência; (2) a descrição de processos; (3) classificação de experiências por categorias comuns; (4) ordenamento e tabulação de informações e (5) dissertação teórica exemplificando com algumas referências práticas. Todos esses elementos podem servir de base insumos para a realização de análises críticas, teorizações, generalizações, interpretações, que de forma integrada e sinérgica têm potencial para culminar numa sistematização, mas isoladamente não conseguem garantir a amplitude e profundidade que são marcas desse tipo de prática.
APRENDIZADOS E REFLEXÕES:
- A sistematização de uma experiência pode ocorrer paralelamente a sua execução. Não é necessário que o ciclo da iniciativa tenha chegado ao fim para que a sua construção seja iniciada. Valorize o processo!
- A sistematização tem muito a contribuir com o fortalecimento das capacidades internas da organização e dos atores que fizeram a iniciativa acontecer. Sua publicização não deve ser a finalidade do processo, mas uma consequência.
- Os erros podem e devem, fazer parte! São importantes fontes de aprendizados. Reconhecê-los e incluí-los é uma importante premissa, pois na tentativa de mascarar resultados indesejados, algumas organizações terminam fazendo desse produto um espiral de ilusões.
- Para favorecer um bom desempenho na coleta e na abertura de canais de escuta, selecione criteriosamente técnicas, metodologias e suportes tecnológicos que favoreçam, qualitativa e quantitativamente, a participação dos atores implicados.
- Importante saber distinguir que avaliação e sistematização são práticas complementares, mas possuem objetivos e efeitos distintos.
- A sistematização é um mergulho coletivo nas águas profundas de uma dada experiência. Trata-se de uma ação multiatorial, portanto, é crucial o engajamento das partes interessadas.
- O produto da sistematização deve trazer uma narrativa clara, objetiva e profunda que demonstre a singularidade da experiência, as boas práticas e lições aprendidas.
- A sistematização é uma confluência de conhecimentos tácitos e explícitos, que, em alguma medida, demandam historicização e/ou teorização.
- O produto de uma sistematização configura-se um documento vivo (recomenda-se que seja revisitado e atualizado periodicamente nos marcos temporais definidos pela organização) e deve ser conectado a modelos ou práticas de Gestão do Conhecimento, como: portal do conhecimento, biblioteca digital, programa de boas práticas, registro de lições aprendidas, memória organizacional, etc.
- A sistematização pode ser considerada um caminho para o fortalecimento da identidade de grupos e organizações e consequentemente a consolidação do legado organizacional.
Sistematizar é uma oportunidade ímpar para gerar um novo conhecimento, conectar vozes e olhares dos atores implicados em uma experiência para registrar, analisar criticamente, em amplitude e profundidade, a sua evolução e oferecendo inputs para aprimorá-la em caso de futura replicação. Não existe uma regra de ouro para a materializá-la. Alguns elementos norteadores já foram apresentados. Se você leu até aqui, quando precisar efetivar essa prática, não perca oportunidade de fazer diferente, de fazer bem-feito!
PARA SABER MAIS:
- CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES – CUT. O que é sistematização? Uma pergunta. Diversas repostas. CUT: São Paulo-SP, 2000.
- EVALPARTICIPATIVA. Sistematização de experiências e avaliação: proximidades e diferença. Fonte: https://evalparticipativa.net/2021/03/22/sistematizacion-de-experiencias-y-evaluacion-cercanias-y-diferencias/. Acesso em 18/04/21.
- HOLLIDAY, O. J. Para sistematizar experiências / Oscar Jara Holliday; tradução de: Maria Viviana V. Resende. 2. ed., revista. – Brasília: MMA, 2006. 128 p. ; 24 cm. (Série Monitoramento e Avaliação, 2).
- HOLLIDAY, O. J. Para sistematizar experiências / Oscar Jara Holliday; tradução de: Maria Viviana V. Resende. 1a. ed., João Pessoa-PB: Editora Universitária UFPB. 1996. 214 p.
- MILANI, C. S. et al. (org.). Roteiro de sistematização de práticas de desenvolvimento local. Salvador: CIAGS, 2005.
¹Oscar Jara Holiday, Sociólogo peruano, é um dos pesquisadores da “Sistematização de Experiências” e Educador Popular com vasta experiência como consultor nesse campo em muitos países da América Latina.
Fabrício Cruz é baiano com muito orgulho! Profissional do Desenvolvimento. CEO da Atairu – Gestão e Inovação Social. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social (EAUFBA/PDGS). Especialista em Gestão de Projetos (ESALQ/USP e Project DPro), e em Inovação, Sustentabilidade e Gestão de Organizações da Sociedade Civil e do Terceiro Setor (UNIJORGE). Gestor do Conhecimento (SBGC). Autor do livro “O futuro chegou! E agora? Avaliação participativa conectando percepções do impacto das tecnologias nas políticas públicas educacionais”.