Novas frentes de resistência da comunidade negra trazem para o debate diferentes abordagens e lentes no combate ao racismo estrutural que ganham cada vez mais relevância; saiba o que é Afrofuturismo, Black Money e Decolonização
*Foto por Oladimeji Odunsi em Unsplash
O Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado no dia 20 de novembro, ganha mais protagonismo a cada ano, e prestes a completar dezoito anos de criação o que se tem é um legado de experiências e perspectivas que reforçam a sua relevância. Os inúmeros casos de racismo, que ocorrem diariamente na nossa sociedade, reafirmam a importância das discussões e ações para combater o racismo estrutural no nosso país. Além de ser também um momento de falar sobre os avanços na luta do povo negro e sobre a celebração da cultura afro-brasileira.
Os dados sobre desigualdade racial no Brasil só corroboram com a relevância da data e do tema. De acordo com a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça” lançada em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os pretos e pardos, que são 56% da população brasileira, têm os piores indicadores de renda, moradia, escolaridade, serviços, entre outros.Já o Atlas da Violência 2021, demonstra que nos últimos dez anos, uma pessoa negra teve ao menos duas vezes mais riscos de ser assassinada do que qualquer outra no Brasil. Em 2019, essa diferença foi a segunda maior registrada no período: 2,6 vezes. Naquele ano, negros foram 75,7% das vítimas de homicídios no Brasil e eram 56,8% da população. A pesquisa foi produzida pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e se refere ao ano de 2019.
Mas, para além dos dados, vemos que a comunidade negra vem resistindo e enfrentando o racismo estrutural que está inserido na sociedade brasileira e combatendo o pensamento, presente na nossa sociedade e influenciado por uma hegemonia eurocêntrica, de que o povo negro é inferior e que naturaliza o racismo.
De acordo com o autor e diretor-presidente do Instituto Luiz Gama, Silvio Luiz de Almeida, em seu livro Racismo Estrutural (2018), o racismo não é um ato ou um conjunto de atos e tampouco se resume a um fenômeno restrito às práticas institucionais; é, sobretudo, um processo histórico e político em que as condições de subalternidade mostram de forma clara, as classes subalternas sendo uma parte da sociedade que é submetida às margens pela classe dominante/hegemônica, encontrando-se nas mãos da exploração e opressão constantes. “Pensar o racismo como parte da estrutura não retira a responsabilidade individual sobre a prática de condutas racistas e não é um álibi para racistas. Pelo contrário: entender que o racismo é estrutural, e não um ato isolado de um indivíduo ou de um grupo, nos torna ainda mais responsáveis pelo combate ao racismo e aos racistas”, afirma no livro.
É nesse ponto que encontramos várias frentes de resistência da comunidade negra que trazem para o debate diferentes abordagens e lentes que ganham cada vez mais relevância, mas ainda são desconhecidos por parte da população. Novos conceitos e movimentos mostram a resistência e buscam ocupar diferentes espaços na sociedade, muitos deles negados ao povo negro. Separamos alguns exemplos que você precisa conhecer e fortalecer na luta antirracista.
Afrofuturismo
O termo foi cunhado pelo pesquisador branco, e crítico cultural estadunidense, Mark Dery em 1993 e explorado no final da década de 1990, quando o gênero começou a ganhar força com debates iniciados pela estudiosa Alondra Nelson.
Para a pesquisadora e crítica de cinema, Kênia Freitas, uma das primeiras pessoas a escrever sobre afrofuturismo no Brasil, o Afrofuturismo se trata de um movimento vivo e em construção. “Desta forma, há muitas definições. A que prefiro é a que pensa o Afrofuturismo como um movimento político e estético que explora narrativas de ficção especulativa a partir da perspectiva negra. Algumas vislumbram a possibilidade de novos futuros para a população negra, enquanto outras trabalham reelaborando o passado ou fabulando o presente”, afirmou em recente entrevista para o Draft.
Uma das mais conhecidas produções afrofuturistas é o filme Pantera Negra, da Marvel, que se passa no avançado reino africano de Wakanda. A adaptação para o cinema foi um sucesso mundial e causou um crescente interesse pelo movimento. No entanto, a produção artística nessa área já vem acontecendo fortemente com diversos e importantes artistas na última década.
Algumas obras importantes de Afrofuturismo são: os romances de Samuel Delany e Octavia Butler; as telas de Jean-Michel Basquiat e Angelbert Metoyer, a fotografia de Renée Cox; os mitos explicitamente extraterrestre dos músicos do coletivo Parliament-Funkadelic e Sun Ra; os quadrinhos do super-herói Pantera Negra da Marvel Comic; a literatura de ficção científica da americana Octavia E. Butler.
Black Money
A população negra movimenta cerca de 1,7 trilhão de reais por ano no país – mas ainda recebe em média R$ 1200 a menos do que seus colegas de trabalho brancos. Os negros também representam 75% da população que está na faixa dos 10% mais pobres e 66% dos desempregados do Brasil.O termo “Black Money” é um conceito que vem crescendo a cada ano e que aos poucos vem mudando esse o quadro apresentado acima, por trazer novas perspectivas sobre a maneira como se consome e, principalmente, para quem esse dinheiro é repassado.
O Movimento Black Money resumidamente pode ser definido como conectar pessoas negras de diversas profissões para fortalecer o empreendedorismo e a circulação de recursos financeiros entre a comunidade negra. O movimento estimula a valorização da negritude e o pertencimento social, como também coloca em rede produtos e serviços de pessoas negras.
Bem antigo nos Estados Unidos, o termo lá serve para designar o dinheiro sujo. Mas no Brasil, porém, a expressão foi ressignificada por movimentos de luta afrodescendente e passou a designar o dinheiro que circula entre pessoas negras em suas negociações, realocando a concentração de renda e diminuindo as desigualdades.
Uma das fundadoras do Black Money é Nina Silva, formada em administração e especializada em tecnologia, e líder em gestão de projetos em tecnologia da informação na consultoria de TI ThoughtWorks. Ela já trabalhou para empresas como Heineken, Honda e L’Oréal e foi escolhida como uma das 20 mulheres mais poderosas do Brasil pela revista “Forbes”, além de uma das 100 afrodescendentes mais influentes do mundo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).
Nina disse que o movimento Black Money foi inspirado em experiências que vivenciou nos Estados Unidos, onde morou por um tempo, e também no Panafricanismo, com a proposta de deixar o capital financeiro e social circulando o maior tempo possível na comunidade negra.
Para ela, entre os principais objetivos do movimento, estão a valorização dos negócios de pessoas negras e fazer com que o consumidor negro tenha as suas necessidades satisfeitas por empreendedores negros. Ao contribuir para a ascendência financeira de outros negros toda a população negra é favorecida e cresce junto. A partir daí, serão menos negros na linha da pobreza, no desemprego e em trabalhos subutilizados. Haverá maior representatividade negra no mercado e, consequentemente, mais pessoas com poder aquisitivo preocupadas em elevar outros negros e no comando de empresas com o poder para contratar, financiar, apoiar e promover pessoas negras.
Decolonização
A decolonialidade ou o pensamento decolonial é uma escola de pensamento que busca o caminho para resistir e desconstruir padrões, conceitos e perspectivas impostos aos povos subalternizados pela hegemonia de conhecimento eurocêntrico. O movimento critica a suposta universalidade atribuída ao predomínio do conhecimento e da cultura ocidental.
Esse movimento vem obtendo maior destaque na América Latina, e se colocando como uma alternativa para dar voz e visibilidade aos povos subalternizados e oprimidos que durante muito tempo foram silenciados. É considerado um projeto de libertação social, político, cultural e econômico que visa dar respeito e autonomia não só aos indivíduos, mas também aos grupos e movimentos sociais, como o feminismo, o movimento negro, o movimento ecológico, o movimento LGBTqia+, entre outros.
Apesar da colonização formal e explícita ter acabado com a descolonização de vários territórios entre os séculos XVIII e XX, seus sucessores continuam perpetuando a desigualdade. Essa matriz colonial de poder produziu as circunstâncias que resultam na discriminação social codificada de várias maneiras como racial, étnica ou nacional de acordo com contextos históricos, sociais e geográficos específicos.
Especificamente, para o movimento negro, a decolonização se propõe a eliminar o imaginário eurocêntrico que criou um cenário que privilegiava o homem branco e desprivilegia o negro quando se trata de conceitos como beleza, inteligência, limpeza, pacificação, liderança, organização, civilização, naturalizando assim um lugar inferior as populações que foram escravizadas pelos brancos.
Conheça algumas iniciativas que estão alinhadas com esses conceitos
Coalizão Negra por Direitos
A Coalizão Negra por Direitos é uma instituição de articulação que reúne 250 organizações, entidades e coletivos do movimento negro brasileiro na busca por reafirmar o legado de resistência, luta, produção de saberes e de vida do povo negro. A entidade enfrenta o racismo, as desigualdades, as violações de direitos, a discriminação racial, a violência que atingem diariamente a população negra no Brasil.
A articulação pela Coalizão Negra tem gerado ações articuladas para o enfrentamento ao racismo, ao genocídio e às desigualdades, injustiças e violências derivadas do caráter racista, preconceituoso e intolerante da sociedade brasileira. Como exemplo podemos citar: entrega de um dossiê que relata os impactos sanitários, sociais e econômicos da pandemia à população negra brasileira ao relator da CPI da Pandemia; denúncia do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, à Comissão de Direitos Humanos da ONU, por violações de direitos humanos e dos interesses da população negra; mobilização de 28 atos contra o racismo após a operação policial na Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, realizada em maio passado, que deixou 29 mortos, a mais letal da história do estado.
Fundo Agbara
O Fundo Agbara tem atuação em três frentes: aportes financeiros, assessorias e educação. Os aportes financeiros contemplam mensalmente no mínimo quatro empreendedoras negras ou indígenas de territórios periféricos com valores entre R$600 a R$900.
As assessorias técnicas são realizadas através de uma rede de mais de 60 voluntários que oferecem serviços diversos, como: assessorias jurídicas, médicas e psicológicas. Já na área da educação, o Fundo disponibiliza consultoria de gestão de negócios, desenvolvimento de marca, criação de logotipo, aulas de inglês, aulas de música, entre outros.
A mulher negra, parda ou indígena que quer ter seu pequeno negócio potencializado pelo Fundo Agbara basta acessar o site e preencher um formulário. Para quem tem interesse em se tornar um doador, também é possível através do site do Fundo. A doação mínima é de vinte reais, de forma recorrente, por um período de 12 meses.
Mensalmente são selecionadas mulheres negras, pardas ou indígenas que sejam gestoras de pequenos empreendimentos para receber o fomento em dinheiro e participar das assessorias realizadas pelo Fundo. As empreendedoras inscritas são avaliadas pelas coordenadoras de acordo com os seguintes critérios: renda, número de dependentes, viabilidade e alcance do empreendimento e vulnerabilidade.
Rede Cenafro
Atuando desde 2016 com pioneirismo no estado de Alagoas nas questões referentes ao afroempreendedorismo criativo, a Rede Cenafro se define como um Hub de Criatividade Preta com a missão de estimular empreendedores pretos a desenvolverem seu potencial inventivo e de geração de impacto social. A rede funciona como uma vitrine de afronegócios que levam em consideração todo o legado da cultura diaspórica, além de desenvolver uma visão afrofuturista, na qual enxerga a construção de futuros possíveis a partir de uma perspectiva afrocentrada.
Com quase 5 anos de funcionamento, a Rede Cenafro desenvolveu capacitações, workshops e oficinas voltadas para o fortalecimento de afroempreendedores criativos, além de contribuir em parceria para projetos a nível nacional como o Afrolab em 2018.
A Rede realizou cinco edições do Festival Afrocriativo, que visa apresentar um panorama das produções pretas na economia criativa, além de promover intercâmbio de conhecimento e saberes entres artistas, produtores culturais, agentes culturais, comunidades tradicionais, órgãos de apoio e fomento à cultura e público geral, sempre valorizando a identidade preta e ancestral em suas ações.
Além disso, foram realizadas 3 edições da Feira Afrocriativa que tem o objetivo de mostrar o potencial do mercado afro, através da gastronomia, artesanato, moda, arte preta, música e os mais variados produtos e serviços da cultura afro-brasileira.
Vale do Dendê
A Vale do Dendê é uma organização social, que desde 2017, tem fomentado o empreendedorismo local com foco em diversidade e segmentos periféricos, com programas de aceleração em áreas como: economia criativa, gastronomia e tecnologia.
A organização possui hoje 150 empresas aceleradas e já impactou indiretamente mais de 800 empresas com seus programas de treinamento. Alguns dos principais cases do programa de aceleração da Vale do Dendê são a empresa de moda Dendezeiro, a empresa de jogos Aoca Game Lab, a de logísica Infleet, a HealthTech AfroSaúde e a startup de delivery em comunidades TrazFavela.
A Vale do Dendê foi criada em 2016 para fomentar ecossistemas de inovação e diversidade tendo como foco principal a cidade de Salvador, na Bahia. Em 2017, foi realizada a primeira edição da Ocupação Afro.Futurista e lançada a Aceleradora Vale do Dendê, um programa de aceleração que já apoiou 90 empresas diretamente. Além disso, a organização mantém um hub físico na Estação Nova Lapa, onde passam 500 mil pessoas por dia.
O espaço oferece cursos, workshops e atividades de fomento à cultura empreendedora. A organização já foi destaque em publicações nacionais e internacionais por conta do seu trabalho inovador em levar o tema do empreendedorismo e tecnologia para o público das periferias.