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Filantropia Comunitária e de Justiça Social: estratégias para transformação da sociedade

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A atuação da sociedade civil organizada tem se mostrado fundamental para a divulgação e a garantia de direitos, sobretudo a partir da inspiração e construção de políticas públicas de alcance universal. No entanto, a filantropia no Brasil, muitas vezes, ainda recorre a estratégias assistencialistas, desperdiçando oportunidades para uma mudança social mais profunda, que poderiam efetivamente transformar a realidade de comunidades inteiras.

Em novembro de 2023, o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) lançou uma nova edição do Censo GIFE, realizado a cada dois anos com sua base de associados. Junto a outros levantamentos, como o do BISC, o Censo é uma pesquisa de referência no campo, que permite traçar um panorama do investimento social privado (ISP) no Brasil.

De acordo com as informações da 11ª edição do Censo GIFE 22/23, confirma-se que 61% dos investidores sociais declararam um total de R$ 838 milhões em doações para OSCs. No quesito foco de atuação das organizações filantrópicas (para onde os recursos são direcionados), o levantamento do GIFE apontou a “Educação” como principal área, disparando em 1º lugar com 71% e quase R$ 2 bilhões em 2022.

Por outro lado, setores como “Defesa de direitos, cultura de paz e democracia” e “Desenvolvimento local, territorial e/ou comunitário”, receberam 38% de atenção com R$ 245 milhões e “Desenvolvimento institucional de OSC e movimentos sociais” pontuaram com 36% com R$ 172 milhões de investimento.

A distribuição dos investimentos sociais chama a atenção, primeiramente, pela concentração de recursos em áreas como Educação. Isso sugere a promoção de agendas mais alinhadas às lógicas de mercado e aos interesses específicos de institutos e fundações, que historicamente preferem financiar suas próprias iniciativas. Além disso, há uma aparente desconexão entre os financiadores e as reais necessidades das comunidades atendidas. A abordagem top-down frequentemente resulta em soluções insustentáveis e inadequadas aos desafios locais, indicando falhas sistêmicas mais profundas na filantropia tradicional.

Uma dessas falhas, é o distanciamento da comunidade nas decisões sobre como e onde os recursos são aplicados. No que se refere a territórios de atuação, áreas de preservação ambiental (13%), comunidades remanescentes de quilombos (10%), terras indígenas (7%) e assentamentos (3%) figuram baixo na agenda de prioridades do investimento social privado. Outro aspecto revelado é que o Sudeste se mantém como a região em que se concentra a maior atuação dos respondentes do Censo, com 76%, enquanto o Norte e Nordeste concentram a menor, com 36% e 39% respectivamente.

Neste cenário, a filantropia comunitária e de justiça social se apresenta como uma solução promissora. Este modelo coloca o poder decisório nas mãos de quem está diretamente afetado pelos problemas, promovendo uma governança mais inclusiva e responsiva.

Mas o que é Filantropia Comunitária?

De acordo com a Rede Comuá, a filantropia comunitária é um conceito em constante evolução, envolvendo ações colaborativas e articulações entre diversos agentes sociais, sem impor soluções preestabelecidas. Sua essência reside em fortalecer as comunidades, capacitando-as a encontrar suas próprias soluções para desafios, promovendo um bem coletivo. Este tipo de filantropia visa desenvolver recursos, talentos e confiança ao nível local, descentralizando o poder para que as comunidades tenham maior controle sobre seu desenvolvimento.

Em 2023, em parceria com a ponteAponte, a Rede Comuá lançou o primeiro Mapeamento de Organizações Independentes Doadoras para a sociedade civil no Brasil. Com o objetivo de ser um instrumento de incidência, capaz de levantar novas reflexões, questionando as relações de poder e as práticas coloniais do fazer filantrópico, além de contribuir para o campo apontando novos caminhos de colaboração entre múltiplos atores (filantropia internacional, corporativa, familiar e independente).

E a Filantropia de Justiça Social?

A filantropia de justiça social, por sua vez, foca na promoção da equidade e dos direitos humanos, combatendo as causas profundas das desigualdades. Esse tipo de filantropia apoia iniciativas que visam empoderar grupos vulnerabilizados, garantir acesso igualitário a oportunidades e promover mudanças estruturais na sociedade.

Por meio de doações, direciona o apoio aos movimentos, organizações e grupos que buscam transformação social, igualdade de acesso, direitos humanos e civis, bem-estar equitativo e diversidade inclusiva, abrangendo áreas como gênero, orientação sexual, raça, etnia, cultura, além de incluir pessoas com deficiências e neurodiversas.

Princípios da Filantropia Comunitária

No Programa Saberes, da Rede Comuá, aprendemos que esse modo de fazer filantropia busca promover uma mudança nos ecossistemas filantrópicos, promovendo um giro decolonial, questionando as práticas tradicionais e hegemônicas, muda a forma como se doa e amplia as práticas de grantmaking, reconhecendo as organizações e território que recebem apoio financeiro como agentes ativos da transformação em busca de soluções próprias para os problemas existentes na construção de um bem comum maior.

A Filantropia Comunitária busca seguir os princípios práticos, que orientam a sua forma de atuação:

  1. Reconhecimento e valorização dos ativos das organizações apoiadas: conhecimentos, competências, redes, pessoas, vivências;
  2. Reconhecimento da autonomia das organizações apoiadas na concepção e definição dos rumos do projeto e de sua gestão, tanto em relação ao poder de decisão quanto na gestão de recursos;
  3. Desenvolvimento de ações voltadas ao fortalecimento de lideranças locais e comunitárias e do tecido comunitário;
  4. Investimento por meio de doações (financeira ou não-financeira) no fortalecimento institucional das organizações apoiadas;
  5. Priorização de temas e públicos associados a grupos historicamente minorizados (minorias políticas) e com histórico de violação de direitos (negros, mulheres, LGBTIA+, indígenas e povos tradicionais);
  6. Adoção de processos e mecanismos que facilitem o acesso amplo a recursos e a prestação de contas por parte de organizações apoiadas;
  7. Promoção da diversidade e da participação de representantes das organizações apoiadas em processos/instâncias de decisão internos ao Instituto/Fundação (governança).

Este é o melhor momento para inovar na filantropia

Comunidades tradicionais e povos quilombolas podem contribuir de forma direta e concreta com a preservação do meio ambiente e do clima, por exemplo. Quando uma organização recebe apoio financeiro para desenvolver ou aprimorar uma solução que promova a produção de alimentos de forma ecológica e contextualizada com o semiárido, toda a comunidade ganha, seja com o aumento da produção de alimentos para subsistência, seja com a geração de novas oportunidades de renda.

Ao apoiar projetos como esses, institutos e fundações tornam a mudança social mais próxima da realidade. É possível construir pontes entre iniciativas, utilizar metodologias ancestrais e incorporar práticas inovadoras, criando um impacto positivo e duradouro nas comunidades mais distantes dos centros econômicos.

Ao empoderar lideranças locais — no sentido descrito por Joice Berth, que inclui a subversão das estruturas de poder e a transformação tanto individual quanto coletiva —, coletivos e organizações sociais podem gerir os recursos conforme suas necessidades específicas. A filantropia comunitária e de justiça social não apenas fortalece o tecido social, mas também aumenta a eficácia e a sustentabilidade dos projetos implementados. Dessa forma, é possível não só distribuir os recursos de maneira mais equitativa, mas também garantir que eles sejam utilizados de maneira mais eficiente e verdadeiramente transformadora.

Referências

COMUÁ, Rede e PonteAPonte. Filantropia que transforma: mapeamento de organizações independentes doadoras para a sociedade civil nas áreas de justiça socioambiental e desenvolvimento comunitário no Brasil. 1º ed. agosto, 2023. Disponível em: https://redecomua.org.br/wp-content/uploads/2023/09/REDE-COMUA_Filantropia-que-transforma_v2-1.pdf

JUSTIÇA SOCIAL, Rede de Filantropia para a. Os desafios na comunicação da filantropia comunitária e de justiça social. Rio de Janeiro: Ape’Ku, Selo Doar para Transformar, 2021. 1ª edição. Disponível em: https://conjunta.org/wp-content/uploads/2023/09/Os-desafios-na-comunicacao-da-filantropia-comunitaria-e-de-justica-social.pdf

SILVA, Patrícia Kunrath (org.), vários colaboradores. Censo GIFE 2022-2023 [livro eletrônico] São Paulo: GIFE, 2023. Disponível em: https://sinapse.gife.org.br/download/censo-gife-2022-2023

NOTÍCIAS, Gife. Filantropia comunitária: uma estratégia de atuação com os territórios, não para eles. 19/11/2018. Disponível em: https://gife.org.br/filantropia-comunitaria-uma-estrategia-de-atuacao-com-os-territorios-nao-para-eles/

AZEVEDO, Jonathas. A transformação da filantropia: práticas da filantropia independente e comunitária no Brasil. 11/04/2024. Disponível em: https://redecomua.org.br/a-transformacao-da-filantropia-praticas-da-filantropia-independente-e-comunitaria-no-brasil/

COMUÁ, Rede; HOPSTEIN, Graciela (org.) Filantropia de justiça social, sociedade civil e movimentos sociais no Brasil. 2018. Disponível em: https://sinapse.gife.org.br/download/filantropia-de-justica-social-sociedade-civil-e-movimentos-sociais-no-brasil

BEJA, Instituto; OXYGEN. Tendências para a filantropia: um olhar para o Futuro. 2023. Disponível em: https://institutophi.org.br/o-futuro-da-filantropia-no-brasil-contribuir-para-a-justica-social-e-ambiental/

NOTÍCIAS, Gife. Investimento em organizações da sociedade civil é desafio da filantropia em 2024. 15/01/2024. Disponível em: https://gife.org.br/investimento-de-organizacoes-da-sociedade-civil-e-desafio-da-filantropia-em-2024/ NORDESTE, Impacta. Censo GIFE 2022-2023 traz informações inéditas sobre a filantropia no Brasil. 05/12/2023. Disponível em: https://impactanordeste.com.br/censo-gife-2022-2023-traz-informacoes-ineditas-sobre-a-filantropia-no-brasil/

Daiany França. Cearense inquieta, empreendedora por natureza, professora e profissional da saúde por formação, pesquisadora, escrevedeira, eterna aprendiz e ativista das Organizações da Sociedade Civil. Fundadora e CEO da Mais Impacto e Líderes Esportivos. Bolsista do Programa Saberes, da Rede Comuá.

Sara Café. Jornalista atuante na área de impacto social e integrante da Rede Impacta Nordeste.